sábado, 18 de junho de 2016

Letra de Livro


      Anos 70...      

      O cachorro latia insistentemente fazendo com que Dona Aurora se irritasse e o mandasse ir deitar. Figo chorava, abanava o rabo fazendo com que seu corpo envergasse lateralmente. Dona Aurora olhou pelo vitrô da cozinha e entendeu o motivo: Véio chegando com um embrulho nas mãos. Não era um embrulho, mas uma maleta verde que ela não tinha ideia do que seria.

      Véio, como era carinhosamente chamado por todos, devido a precocidade de seus cabelos brancos, desde os dezesseis anos, assoviava subindo o degrau que separava a calçada do portão de ferro, enferrujado pelo tempo, que garantia a segurança e privacidade de sua casa. Ao abri-lo, um ranger incomodava quem estava por perto. Garantia que afugentava os homens de pouco caráter, pensava ele todas as vezes em que entrava ou saía de casa. Já estavam acostumados com o ranger, mas os vizinhos ainda ficavam incomodados. Quem passava em frente a sua casa não entendia o mistério do portão denunciador, pois o restante do muro era baixo, sendo de fácil acesso a quem tivesse destreza suficiente para pulá-lo. Mas, além do portão, havia Figo, seu leal companheiro, aos doze anos com cara e jovialidade de um adolescente. Seu pelo, quando exposto ao sol, ficava esverdeado, bonito, brilhoso, por isso o nome Figo. Figo da fruta, que faz o doce mais suculento já feito por Dona Aurora. Ficava tão verde que dava dó de comer sem lamentar estragar a perfeição da bolinha em foma de pião. Mas essa é uma outra história. Lembram do pião de madeira que os meninos enrolavam uma corda e lançavam ao chão?

      Dona Aurora, enxugando as mãos no avental surrado, ficou na porta esperando Seu Véio todo pimpão chegando com sua maleta misteriosa. 

      Todo orgulhoso destravou o fecho, abriu calmamente, riu e perguntou para sua mulher se sabia o que era aquilo. 

      — "Não, quéisso, Véio?" — perguntou curiosa.

      — "Isso é uma máquina que faz letra de livro, muié, espia só!" — sorriu, abrindo os braços mostrando a maravilha de aparelho que acabara de comprar.

      Dona Aurora não entendeu nada, apenas olhou na cara dele e voltou à lida da casa. 

      Seu Véio sentou-se, ficou admirando a bichinha, depois levantou-se e pegou um pedaço de papel, desses de enrolar pão. Tentou enfiar pelo rolo da máquina, mas não fazia ideia de como ela ficaria retinha lá dentro. Olhava de um lado, do outro, descobriu as rodelas laterais que faziam girar o rolo e deduziu que se introduzisse o papel de um lado, logicamente saía do outro lado. E fez! Ficou todo torto, mas conseguiu. Só não atinou que havia um "prendedor" para a folha ficar esticadinha, bastava puxá-lo para a frente, ajeitar o papel e depois soltá-lo. Com sacrifício, enfiou a folha sem afastar o "prendedor", com muita dificuldade, mas acabou conseguindo. Sorriu e se achou o maioral dos maiorais, pelo menos entre seus amigos era considerado o mais inteligente e culto. 

      Lembrou-se das instruções da moça da loja, em apertar as teclas com força, para que carimbassem no papel. A primeira seria A, em homenagem à Aurora, sua deusa para todos os momentos, tanto alegres quanto tristes. Não tinha muita paciência com ele, mas pelo menos não ficava criticando ou chamando sua atenção. 

      Depois veio a letra U. Depois R e assim por diante, até escrever Aurora em letra de livro, como havia prometido a moça da loja.

      — Corre aqui, veia, vem ver!

      Dona Aurora chegou por trás de Véio e leu seu nome, todo retinho, bonitinho e com letra de livro.

      — Gente, coméisso, Véio, cê endoidou, foi?

      Seu Véio ficou o resto da tarde fuçando na máquina de datilografia. Vez ou outra cantarolava uma moda de viola que saía do radinho de pilha que tinha lugar cativo sobre a geladeira. Dava uma sacudida nos ombros e depois voltava a acariciar sua preciosidade. Correu para pegar a Bíblia e copiar alguma frase. A folha não estava mais em branco e nem retinha na máquina, mas as letras de livro estavam todas em carreirinha, ornadas uma do lado da outra, algumas sem espaço entre elas e outras totalmente ilegíveis, como se Seu Véio fizesse um teste com as letras não utilizadas naquele momento. Depois os números, em ordem crescente e depois decrescente. E finalmente descobriu como escrever em letras grandes, maiúsculas e fáceis de enxergar. Soltou um grito de satisfação, levantou-se, puxou Dona Aurora pelo braço, segurou sua cintura e começou a rodopiar com ela, aproveitando a carona do forró que tocava solto na rádio.

      Dona Aurosa ria que dava gosto. Era feliz com seu veio assim, de graça, sem fazer esforço. Primeiro namorado e único homem de sua vida, Para sempre, obedecendo o sacramento matrimonial que há quarenta anos uniu esse homem descabeçado, avoado, curioso e doce. Simplesmente o amor de sua vida.

                                                                                                                                                           Fim

11 comentários:

  1. Boa Tarde, querida Clara!
    Bonita e espontânea história de um amor duradouro... como sempre, muito bem escrito...
    Bjm muito fraterno

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  2. Que texto bom!
    Eu tenho uma máquina dessas, de estojo vermelho. Quase um dinossauro, né? rs
    Interessante ele querer a máquina, sem saber nem como fazê-la funcionar.
    Mas a vida é para quem se interessa e se arrisca a aprender.
    Beijo, Clara.

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  3. Clara, seus personagens são ótimos! Pude acompanhar o desenrolar da história como se lá estivesse ao lado do Veio e dona Aurora. Show!
    Bjs

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  4. Me diverti às pampas com esses dois!

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  5. Oi Clara,
    Que conto bonito!
    O amor se manifesta nas coisas simples e poder dividir as pequenas alegrias de cada dia com alguém é uma maravilha.
    Agora imagina encontrar alguém pra viver assim por uma vida toda?Aprender,crescer,descobrir o novo ou simplesmente ficar ao lado,deve ser incrível.
    Abraço =)

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  6. Me diverti com Dona Aurora e o seu Véio...rs
    Amei o conto, querida Clara.
    Meu pai tinha uma máquina de escrever assim.
    Um beijinho enorme e o meu carinho.
    Verena e Bichinhos.

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  7. Olá Clara, um conto dos contos que eu gosto.
    Nasce de uma criatividade e descreve sentimentos que passam ao largo dos menos atentos. Uma curiosidade e o desenvolvimento gradativo.
    Gostei do Véio e sua forma de mostrar amor.
    Parabéns Clara.
    Uma semana linda de paz e amor.
    Bjs amiga.

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  8. Que texto lindo. Amei. Uma boa semana para vocÊ!!

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  9. Olá Clara!
    Você escreve muito , sempre me divirto com suas história. O que faz seus textos ser tão bons é porque sempre tem uma ponta de realidade.
    Uma comédia esse casal risos. Gosto muito de leitura como essa.
    Beijos e ótima semana Clara!

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  10. Interessante texto. Me deu uma saudade de minha antiga máquina meu radio a pilha. Viajei no passado. Parabéns pela bela escrita.

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  11. Eu aprendi a escrever numa máquina dessas de "fazer letra de livro", no tempo dos dinossauros. Ainda quase não se viam computadores, então. Você me fez recuar a esses tempos.
    Adorei essa dupla de personagens.
    Abraço
    Ruthia d'O Berço do Mundo

    P.S. Sobre o seu comentário lá no Berço, Saramago é um desafio mesmo para leitores experientes. Mas depois de entrar no mundo dele, difícil é conseguir sair!

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