Ao primeiro raio de sol que entrava pelo vão entre a janela e a parede, o aroma de café já se fazia presente na casa de Dona Assunta.
Mulher trabalhadora, forte, porém esquelética. Braços finos e dedos longos, pernas que pareciam dois cambitos, rosto que definia o contorno da cabeira, olhos fundos e sorriso contido. Na juventude era meiga e doce, mas a vida tornou-a seca e de coração duro, mas a meiguice às vezes desabrochava nos gestos suaves quando Dona Assunta tomava conta da cozinha.
Tinha os cabelos esbranquiçados, ralos e compridos até um pouco abaixo dos ombros. Quando falava, a parte inferior da boca murchava e a superior tentava equilibrar a dentadura antiga, com os dentes bem gastos e a gengiva rosada. Ela ria e os dentes se pronunciavam para fora, quase que completamente. Quando estava em casa os cabelos eram sempre ajeitados num coque baixo, preso por grampos longos que ficavam aparentes como se fosse palitos negros que contrastavam com o branco acinzentado dos cabelos. Tanto Dona Assunta quanto Seo Lão eram esguios, retos, parecendo cabides ambulantes. Seo Lão usava um chapéu de palha encardido de vermelho e só o tirava quando entrava dentro de algum comodo.
As janelas de madeira eram trancadas com uma tramela e nas portas, o colorido da chita florida em azul, vermelho e amarelo, quebravam a cor da terra predominante no ambiente e separavam os cômodos. Apenas quarto e cozinha.
No quarto, debaixo da janela, a cama em madeira envelhecida, colchão de molas com um vão em cada lado, pelo seu uso ininterrupto. Tudo se emoldurava com o casal, como se os objetos tivessem vida e obedecessem ao corpo de cada um, sem teimosia em querer espetar e correr o risco de furar a pele frágil e craquelada. Um roupeiro sem as portas e mais uma poltrona velha e esburacada compunham a mobília do quarto. Numa das paredes uma única foto, emoldurada de madeira, que também se decompunha pelos cupins, carimbava o casal, sereno e sem os traços enrugados definidos.
Na cozinha um fogão à lenha bem rústico e pequeno, encerado em vermelhão e muito tem lustrado, que fora feito pelo esposo, que era magro e ossudo como Dona Assunta. Eram tão magros que davam a impressão de não terem carnes pelo corpo, apenas os ossos e a pele enrugada. Passavam dos setenta e aparentavam noventa anos. Trabalhadores da roça, tiveram ajuda de uma sobrinha de uma vizinha de terreno, para se aposentarem com um salário mínimo. Sentiam-se privilegiados com a pequena fortuna mensal e agradeciam ao acordar e ao deitarem-se, a Deus, por ainda estarem vivos e com saúde.
Não tinham muitos móveis, somente uma mesa pequena e cinco cadeiras, onde uma delas ficava de enfeite, por não ter uma das pernas. Deixava-a encostada na parede e a mesa a escondê-la, para evitar algum acidente de algum desavisado "cair de maduro" no chão, como dizia rindo Dona Assunta. Meia dúzia de caixotes de madeira empilhados fingiam ser o armário. Duas panelas, quatro pratos e alguns talheres. Na parte de cima um jogo de pratos rasos e fundos, com um filete dourado eram intocáveis. Dona Assunta ganhara de uma ex patroa, na época em que trabalhava na roça. Era sua preciosidade, seu enfeite nobre, sem uso. O orgulho de poder mostrar que tinha algo de valor. Na verdade não sabia o valor, mas sabia que um dia em sua vida ganhara um presente lindo e o levaria intacto até seu último dia de vida. Na parte de baixo, um jarro de plástico cor-de-laranja e vários copos também de plástico, cada um de uma cor. Alguns acusavam mordidas nas bordas, lembrança de seus filhos, quando ainda eram pequenos, também guardados junto com as boas recordações.
Depois de tomar o café forte em uma caneca de alumínio pintada em esmalte branco, Seo Lão ficava um bom tempo, ainda sob os primeiros raios do sol, sentado num toco que servia de banqueta, estrategicamente colocado na sombra da pequena varanda defronte à casa. Colocava a caneca no parapeito da janela, pegava uma palha seca, o canivete que tinha o cinturão como moradia e descascava calmamente o fumo de rolo. Depois ajeitava os fiapos, passava a língua em um dos lados da palha e calmamente fechava o pito. Ia até o fogão, abaixava a cabeça com o pito na boca encostando-o na brasa fumegante, chupando até sair as primeiras baforadas. Chupava longamente, engolia a fumaça e depois soltava pelas narinas. Era um momento de profundo prazer para Seo Lão. Melhor que pitar um cigarro de palha era tomar uma pinga diariamente ao final da tarde, e às sextas feiras, três ou quatro para fechar a semana. Depois voltava para casa, lavava os pés e se deitava ao lado de Dona Assunta para repousar a carcaça cansada.
Dona Assunta gostava de ir à feira bem no finalzinho da manhã para pegar algum legume abandonado na sarjeta, nada que uma água limpa e uma boa esfregada com as mãos, não os transformassem numa sopa suculenta. Apesar da aposentadora, Dona Assunta gostava de guardar um pouco, dentro de casa mesmo, muito bem escondido, para um eventual contratempo. Desde que nasceram aprenderam a sobreviver com o pouco, com o mínimo e até com o nada. A abundância e o desperdício não faziam parte da vida deles. Vez ou outra compravam pão fresco na padaria, mas preferiam o pão "dormido", por ser mais barato. Colocava-o em uma panela, alguns minutos na quentura do fogão e pronto, o pão ficava com cara de novo e muito saboroso.
Não tinham assunto um com o outro, não se olhavam, não riam, não iam juntos aos lugares, mas pelo olhar de soslaio era visível perceber o carinho, o cuidado e o amor entre eles.
Tiveram dois filhos, que faleceram há vinte anos, afogados num lago onde foram pescar com outros dois rapazes. A dor não passou, a tristeza nunca mais saiu de seus olhos, o choro secou e a vida tornou-se infinitamente insuportável. Mesmo assim agradeciam pelos poucos prazerem que lhes restavam. Houve um tempo em que não comiam e nem dormiam, queriam morrer de desgosto e tristeza, mas Deus não permitiu, como eles descreviam para quem não sabe de sua história. Então se Deus não tirou eles da vida, agradeciam por cada sol nascido e por cada lua que iluminava a varanda da pequena casa. Estava bom como viviam e viveriam até o último dia sem reclamar de nada. "Deus sabe das coisas", repetiam quando a tristeza aparecia. O olhar longínquo de Seo Lão na verdade ainda procurava uma explicação para tamanha dor que o tempo não curou. Dona Assunta se entretinha com o fogão vermelho reluzente, seu xodó, com sopas, arroz, feijão e vez ou outra, uma linguiça fininha tilintava na panela.
Os parentes estavam todos longe, na roça, que perderam contato fazia tempo. Os vizinhos eram gente boa, mas não se misturavam com ninguém. Todos muito pobres e sofridos, mas não tanto como Seo Lão e Dona Assunta. Os filhos deles sempre estavam por perto para acudi-los em alguma necessidade.
Não comentavam um com o outro, mas nos agradecimentos a Deus pediam para morrer primeiro, ou então um em seguida do outro, para não terem que ficar sozinhos no mundo. E o dinheiro guardado com cuidado, num esconderijo inimaginável, que quem o encontrasse fizesse por merecer. Esse era o único pedido deles. O mesmo pedido feito separadamente, sem um saber do outro.
E assim viviam, Seo Lão com a alegria de uma caneca de café e um pito de palha e uma pinguinha, um fogão brilhante e vermelho, da cor do fogo, que esquentava o coração e a alma de Dona Assunta.
Até quando Deus quiser.
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Leitura maravilhosa, riqueza de detalhes que nos fazem estar ali, até sentindo o cheiro do café e da pita da D.Assunta! Legal! bjs, chica
ResponderExcluirO pito de palha é muito comum na roça, nesses trabalhadores magros demais, mas cheios de saúde pra enfrentar a vida até o fim.
ExcluirBeijos, amiga!
Oi Clara gostei de como você criou cada detalhe da casa e dos personagens. Eu que convivi com pessoas assim e lugares assim, fui revivendo várias casas lá no cantinho onde minha avó morava e eu passava minhas ferias.Bela descrição Clara e montagem dos personagens nesta relação cúmplice e as vezes distantes.Gostei de ser inserido no texto.
ResponderExcluirParabéns pela criatividade e construção.
Feliz Maio com sonhos belos.
Bjs amiga.
Exatamente, cúmplices e distantes e cuidadores um do outro. Não se desgrudam, mas também não se tocam...
ExcluirUm excelente outono pra vc. Beijo, amigo poeta!
Que delicia de texto. Da para visualizar. Que fiquem sempre juntos esses dois. Na vida, ou na imaginação de cada um. Bjos querida.
ResponderExcluirCamille, creio eu que morrerão juntos, ou em pouco espaço de tempo um do outro. Isso é união de almas, de vidas passadas. Raro de se encontrar, mais ainda existe por aí.
ExcluirBeijo!
Um texto muito bom de se ler. Cada detalhe é tão real que parece que estamos na cena deste seu conto encantador. Gostei muito!
ResponderExcluirUm abraço.
Amigo Élys,no interior dos estados sempre há algo parecido. Gente simples e que entregam a Deus o dom da vida, por simplesmente não saberem o que fazer...
ExcluirBeijo!
Olá, Clara, como vai? Parabéns pela escrita do texto em pormenores, transporta-nos até o cenário de vida simples e coração puro. Fiquei imaginando quantas histórias como essa podemos encontrar na realidade do campo. Pessoas corajosas e fortes, apesar da magreza - fortes no que é mais importante. Abraços!
ResponderExcluirMuito rica em detalhes, a sua história. Quantos casais não existirão parecidos com este? Murchos por dentro e por fora? Tristeza e velhice são uma mistura imensa.
ResponderExcluirAbraço, um doce fim-de-semana
Ruthia d'O Berço do Mundo