domingo, 30 de agosto de 2015
Olhos Embaçados
Inverno com cara de verão, calor seco e insuportável, dando a sensação de estar respirando poeira, Augusta olhou para o batente da porta e viu marcas de mãos. Levantou-se, pegou um balde com água e sabão, uma bucha de cerdas macias e começou a limpeza. A cor antigamente era branca, mas com a sujeira e o pó tornou-se bege. Como não havia prestado atenção antes? Por quanto tempo o batente estava sujo?
Terminado, olhou para as janelas e viu-as empoeiradas. Olhou para o chão e não estava limpo como costumava ser. Sentou-se no sofá, recostou a cabeça, fechou os olhos e, mentalmente, começou as lamúrias e reclamações. Tantas pessoas lhe vinham à mente que até perdia as contas. Lembrou-se de uma prima, um desafeto antigo que nunca mais ouvira falar, e uma sensação de vazio tomou-lhe o coração. O que ela havia feito mesmo? Faz tanto tempo que nem se lembrava. Como será que está?
Aos poucos Augusta foi deletando todas as pessoas que um dia a magoaram. Pensou em si e como estava inerte na vida, perdendo tempo com o que não havia mudança de sua parte. Por onde andariam as pessoas traiçoeiras e mentirosas que um dia cruzaram sua vida? Sumiram? Ou será que Augusta que se afastou do mundo?
Levantou-se e sintonizou Mozart no pendrive. Sentou-se novamente, fechou os olhos e apenas ouviu as sinfonias. Que maravilha! Instrumento por instrumento, todos ritmados, em sintonia formando a harmonia perfeita da obra-prima de Mozart. Wolfgang Amadeus Mozart, estupendo! Há anos não se deliciava com tamanha perfeição.
Em meio às notas executadas com perfeição, Augusta se recordava de palavras duras e grosseiras lançadas a algumas pessoas queridas. Elas também se afastaram e ela nunca teve coragem de se redimir pedindo perdão. Foram várias, inclusive sua mãe. Mas mãe é mãe e ela estava sempre por perto cuidando da filha apesar de sua indiferença. Mesmo adulta ainda necessitava da atenção de dona Vera.
Abriu os olhos e viu os livros enfileirados na estante, todos empoeirados. De longe via-se a poeira escondendo o filete dourado da capa-dura, de várias cores, vermelhas, pretas, verdes, azuis, todas em tons fortes e brilhantes, terminando com um filete dourado em toda a volta e no título. Coleção linda que comprara um a um, pois na época lhe era muito cara para tanta ousadia. Mais de trinta livros, comprados um por mês. Lera somente alguns. O que lhe encantava era olhá-los enfileirados e arrumados. Pegou uma flanela limpa e um a um foi retirando da estante e limpando com cuidado. A estante antiga, em mogno, foi lustrada com óleo de peroba. Mozart reinava absoluto e os livros voltaram a ser os reis da estante.
Sentou-se novamente no sofá e admirou-os. Sorriu.
Ouvindo somente Mozart e nada mais, limpou as janelas, tirou teias de aranha dos cantos do teto, mudou o sofá de lugar, colocou um tapete que estava esquecido num cômodo onde só haviam quinquilharias, e neste mesmo cômodo, porta-retratos com fotos antigas da família voltaram à estante, logo abaixo dos livros. Faltava algo na sala, um vaso com flores. Queria rosas verdadeiras, mas não se animara a sair para comprá-las. Buscou naquele cômodo esquecido algum vaso antigo. Encontrou um que era de sua avó, branco com desenhos azuis, português. Estava com flores artificiais, mas não gostou delas, então colocou somente o vaso sobre a mesa de centro, também em mogno e com tampo em vidro temperado.
Aumentou o som e Mozart invadiu os outros cômodos. O Sol já estava se pondo e seus raios entraram triunfantes pela janela da sala, que antes só haviam sombras. Olhando-o majestoso se despedir, Augusta chorou. Quanto tempo havia perdido com pensamentos destruidores? Sentiu-se leve e à medida em que as lágrimas lhe escorriam pela face, mais a música lhe invadia a alma dando-lhe leveza e fazendo-a retornar à vida.
Não importaria por quanto tempo cultivou amargura, a partir de agora o cultivo seria outro. Tudo novo, mesmo tudo sendo como sempre foi. Augusta ainda teria uma longa jornada a cumprir e queria esquecer o passado, ou pelo menos tentar esquecer. O presente estava em sua casa, naquela sala com seus livros maravilhosos, Mozart desfilando imponente pelo ar, o Sol a brilhar todos os dias e um coração em processo de limpeza. Não lhe restava nada melhor do que aquele momento que se estenderia pelo resto de sua vida.
Augusta, enfim, renasceu. Foi até a cozinha, avistou várias sujeiras que seriam retiradas no outro dia, fez um chá, ajeitou torradas numa cumbuca de vime, forrou a mesa com uma toalha de chita estampada com flores amarelas e vermelhas, xícaras novas que eram usadas apenas em ocasiões especiais, brancas com desenhos portugueses em azuis, combinando com o vaso da sala. Lembrou-se do jogo completo com pratos, xícaras e sopeira, tudo portugueses. Usaria diariamente desde então. Foi até a casa ao lado, onde morava sua mãe e convidou-a a acompanhar num chá. Dona Vera estranhou, mas sorriu largamente e aceitou de pronto o convite. Pediu para a filha esperar alguns minutos, ajeitou-se no espelho do quarto e foi tomar o chá da tarde com a filha Augusta.
Fim.
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Que lindo e tão bem escrito,Clara e esse final maravilhoso! ADOREI! bjs,chica
ResponderExcluirOlá, Clara, como vai? O cultivo da amargura pode acabar a qualquer momento, a energia despendida para se amargurar e se alegrar é a mesma, basta uma escolha, deixar o passado para trás e olhar em frente. Gosto de finais felizes, eu e esse meu grande coração sensível, rsrsrsrs! Abraços!
ResponderExcluirQue leveza gostosa na tua escrita! Tão peculiar e ao mesmo tempo tão comum de nos acontecer...
ResponderExcluirBeijo!
Olá, querida Clara
ResponderExcluirQue beleza ver a moça resiliente a todo vapor!
Parece verídico e não um conto...
Gostei muito!
Bjm fraternal
Estou retornando e encontro, como sempre uma bela página, Seu conto tem uma leveza maravilhosa.
ResponderExcluirUm abraço.
olá Clara tanto tempo estive ausente ..não só daqui mas de outros lugares e volto para deleitar-me com a suavidade e leveza deste conto. Perfeito querida ..Claro e de uma simplicidade comovente que retrata bem a solidão povoada em que a amargura cede lugar motivada pela embriaguêz da boa musica a um reencontro da personagem com ela mesma.Parabens!
ResponderExcluirConto muito bem construido, parabéns!
ResponderExcluirUma mensagem de transformação. Estar na vida apenas vendo-o a passar. O reencontro do si mesmo. Belo conto.
ResponderExcluirGrata pela visita, volte sempre.
Feliz terça-feira!
ResponderExcluirSempre com textos sensacionais, cativantes e que nos prende até chegar o fim, sempre com gostinho de quero mais..
Grande abraço
Nicinha
Na xícara portuguesa o aroma daquele chá vindo para mostrar que o presente desconsidera o odor de um passado empoeirado, ou limpado para sempre.
ResponderExcluirCadinho RoCo
Bem mais fácil limpar a sala que tirar as teias de aranha
ResponderExcluirda mente, não? As faxinas da mente e do coração, muito
mais urgentes que a da casa física, são sempre deixadas
pra depois e, na maioria das vezes, não são feitas.
Tristeza e solidão são a resposta mínima a esse desleixo.
Beijos.
Estava lendo com o barulhinho da chuva entrando pela minha janela.
ResponderExcluirQue paz.
Adorei.
Bjs.
Bom dia minha linda
ResponderExcluirsimplesmente maravilhoso um dom perfeito
Bjuss de bom domingo
Rita!