quarta-feira, 31 de agosto de 2016
Maria do Socorro
Passava da meia-noite quando Maria do Socorro foi tomar seu banho, tranquila. Queria lavar os cabelos, mas o cansaço era tanto que não teve paciência para caprichar como deveria. Um punhado de shampoo, enxague, uma batida com o bico do condicionador na palma da mão para aproveitar até a última gota, uma massagem nas pontas, enxague e já estava bom. Entre um bocejo e uma esfregada da toalha pelo corpo, ela mais parecia um zumbi à procura de um lugar para deitar o corpo e dormir. Os cabelos ficariam molhados e já estariam condenados a se ajeitarem num coque na manhã seguinte. Mas antes de fechar os olhos uma última olhada nos dois filhos que dormiam no quarto ao lado. A paz tão procurada durante o dia se fazia presente neste exato momento quando olhava os filhos dormirem.
Mateus, de três anos, e Adriana, a mocinha babá e companheira de Maria do Socorro. Uma preciosidade, um orgulho, um encanto gerado num momento de muito amor. O amor se foi, mas os frutos se fortificaram e enchiam o coração de Maria de orgulho.
Deitou-se, fechou os olhos e logo o despertador gritava em seus ouvidos. Era essa a sensação que tinha, mesmo já tendo passado cinco horas de sono. Noite curta demais para caber tanto cansaço. Era um cansaço do corpo que tinha que suportar diariamente. Levantou-se e foi logo colocando as mãos nos cabelos cacheados, ajeitando-os antes do susto de se ver refletida no espelho. As olheiras estavam profundas, as bochechas cada vez mais caídas, parecendo um bulldog, rugas na testa quando franzida, pés de galinha que mais pareciam pés de peru, ou de perua, como gostava de falar, rindo de sua aparência. Olhando cada detalhe no rosto e tentando achar mais alguma prova de que o frescor da juventude estava cada vez mais longe, sorriu. Lavou o rosto, escovou os dentes demoradamente e começou a ajeitar os cachos rebeldes num coque no alto da cabeça. Puxou uns fios sobre cada orelha, enrolou-os no dedo tentando fazer um cacho fino e sorriu novamente. Lembrou-se de seu pai que sempre apertava seu coque que, desde a adolescência tinha o costume usá-lo, chamando-o de troço. Maria ficava brava e saía pisando forte enquanto seu pai gargalhava. Não gostava de ter seu cabelo comparado ao estrume de vaca. Chegava a cheirá-los para saber se estavam com fedor. Sorriu, passou um creme hidratante, pó para tapar pequenas imperfeições, lápis nos olhos e batom nude.
A roupa já estava estirada numa poltrona vermelha, velha, e com o tecido desfiado no encosto, que era disfarçado com uma toalha de crochê, antiga, feita por sua avó. Não combinava, mas era melhor do que sair carregando a espuma que grudava em sua roupa quando se sentava nela. Vestiu-se e foi para a cozinha preparar o café. Apenas um café preto seria o necessário para aguentar até o meio da manhã, onde tinha tempo para se alimentar com calma um pequeno lanche oferecido pela empresa onde trabalhava. Entre uma golada e outra de café, ferveu o feite, fatiou o bolo de fubá e cobriu tudo com um pano de prato branquíssimo, pelas longas horas que ficava de molho em água sanitária, sem ornamento nenhum.
Olhou no relógio e os ponteiros não colaboravam. Tinha que se apressar ou perderia a condução. Foi até o quarto das crianças, deu um beijo em cada uma e acordou a filha dizendo que já estava indo. Assim que o Sol reinasse absoluto no céu, Camila, a filha companheira se levantaria, aprontaria o irmão e o levaria até a creche. A mochila já estava pronta desde a noite anterior e seu uniforme estava passado e pendurado num cabide e apoiado no puxador do roupeiro. Depois seguiria para seu colégio, que ficava a algumas quadras de sua casa. Maria agradecia por ter escolas perto de sua casa. Se dizia com sorte, apesar da situação em que viviam.
Assim que colocava os pés para fora de casa, Maria do Socorro fazia o nome do pai, abaixava a cabeça e conversava com Deus para que nada de ruim acontecesse com seus filhos. A lembrança de Bartô, seu marido, era inevitável e com isso não segurava as lágrimas que desciam rasgando seu rosto fazendo um caminho como se fosse uma estrada de chão, devido ao pó compacto. Um caminho duro e seco, assim como se tornou sua vida. Sentia falta do marido, de seus carinhos e principalmente de sua proteção. Deixou a família antes da hora, muito antes de Maria repetir incansáveis vezes o quanto o amava. Se lembrou da última frase que Bartô disse a ela, segundos antes da bala entrar pela janela e acertar em cheio seus miolos: "Tô com vontade de comer picanha, minha preta..." e caiu sobre a cama encharcando os lençóis de sangue ensanguentado. O cheiro quente e forte do sangue contrastava com a brisa que entrava pela mesma janela onde abrigou a bala assassina. A princípio Maria ficou paralisada...
Até hoje Maria imagina Bartô entrando pela porta, sem fazer barulho, assustando-a e logo em seguida envolvendo-a nos seus braços.
Maria do Socorro voltaria para casa só à noite, onde a rotina já estava programada: primeiro o filho, com abraços, beijos, carinhos, brincadeiras, conversas, e depois um tempo especial reservado para Camila, com ouvidos atentos a tudo que ela falaria. Uma rápida arrumação na casa, faria o jantar que também seria o almoço dos filhos, um bolo ou um pão caseiro, sovado pelos seus braços fortes e musculosos.
E assim continuaria a vida, trabalhando, cuidando, amando os filhos e vivendo seu luto, que duraria por muitos anos, ela sabia muito bem disso.
Texto publicado em 2014 - Editado
Escrevo sobre a vida e os momentos específicos emocionais.
Assuntos relacionados sobre a mente humana e como conviver com o outro sem a necessidade de mudá-lo.
O conhecimento é primeiro processo de cura.
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Olá, Clara! Muito bem escrito, gosto da maneira como desenha os detalhes, me faz entrar na história de fato. Lamentável a descrição da morte do marido dela e fiquei imaginando quantas histórias como essa acontecem todos os dias, infelizmente. Braços que sovam não doem mais diante de uma alma que chora uma perda. Um abraço!
ResponderExcluirMesmo escrevendo uma história me emociono muito. Depois releio e me emociono novamente. É muito triste qdo há tragédias nas famílias, Bia.
ExcluirA dor física acaba sendo bem menor do que a dor da alma.Que bom que vc percebeu o que eu quis passar com essa frase.
Boa semana, beijos!
Oi, Clara!
ResponderExcluirUma narrativa que nos faz cair dentro da história de paraquedas e sentir toda a dor da perda e responsabilidade para que criar os filhos que sente Maria do Socorro. O nome da personagem foi providencial! :) A esperança de dias melhores é sentimento inerente a muitas almas que sentem o amargor de viver um dia a dia de constante labuta.
Boa semana!!
Beijus,
Muitas Marias do Socorro por aí, cena comum no dia a dia em milhares de casas, e perdas são traiçoeiras e acabam com a família toda. Que bom que caiu e gostou do que leu, menina!
ExcluirBeijos, boa semana pra vc tbm!
Que lindo como tu escreves e descreves.Há tantas Marias assim. ADOREI, EMOCIONANTE FINAL! BJS, CHICA
ResponderExcluirSão minutos na vida das pessoas. Observar e descrever, Chica, pegar os mínimos detalhes e colocar no papel.Amo!
ExcluirBeijos, gaúcha!
Vim te ler mais um bocadinho, gostei muito do teu conto, emocionante, triste, uma vida dura, difícil sem muitas alegrias, mas com muito amor, concordo com a Chica muitas Marias assim existe, e entregam-se ao trabalho de corpo e alma para esquecerem um bocadinho a grande dor que tiveram, bjos Luconi
ResponderExcluirNão têm escolha, Luconi, tem que fazer e pronto!
ExcluirMais uma vez, muito obrigada pela gentileza, Luconi!
Beijos
São as Marias Marias que o Milton homenageou numa canção, que são tantas nesta vida cigana. São elas que se desdobram em duas,três e fazem da vida uma comunhão. Seu texto forte e numa criativa e perfeita descrição as descrevem, elas estão em todos os lugares, são bravas, são belas e sobrevivem e até dizem que são felizes, eu acredito.
ResponderExcluirMais uma bela obra Clara, que bem sei são reflexos que voce belamente poetisa.
Meu carinhoso abraço de paz.
Beijo.
Como lembrei de uma musica de Milton deixo um trechinho dela:
"...A vida é boa te digo eu
A mãe ensina que ela é sábia
O mal não faço, eu quero o bem
A nossa casa reflete comunhão"
Obrigada, Toninho poeta, seu comentário me encheu de orgulho e alegria.
ExcluirMe encanta sua gentileza e delicadeza com as palavras, colocadas uma após a outra e descrevendo em forma de poema.
Um abraço carinho e uma ótima semana, amigo!
Muito bonita, lindamente escrita a história.
ResponderExcluirO que faz a história ser boa é os detalhes, e isso você sabe muito bem tecer. Adorei Clara!
Você anda muito sumida!
Esta tudo bem com você!
Uma boa semana!
Um excelente mês de setembro cheio de coisas boas
Um abraço e um sorriso!
Blog da Smareis
Estou de volta depois de um tempo de descanso. Lindo o seu conto, Você escreve cada vez melhor. Prende o leitor com sua inteligente narrativa.
ResponderExcluirParabéns.
Élys
Dura rotina, Clarinha, não é nada fácil trabalhar e
ResponderExcluircuidar de três filhos.
Isso me leva a pensar na 'boa vida' que tive até agora:
Trabalhei muito, mas nunca tive essas decepções tão
comuns em nossa vida de pobre.
Se você não fosse escritora (sim, você é uma escritora),
se daria bem també em jornalismo.
Beijos.
Lindo, como sempre. A história de vida de tantas Marias, Joanas, Claras, Anas, etc. Beijo, maninha.
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