domingo, 9 de agosto de 2015

Antes de Morrer


      A campainha tocou quebrando o silêncio da casa de seu Ernesto, Arnesto, como era chamado, em homenagem a Adoniram. Cecília chegou sozinha, depois de anos, à casa de seu pai. Ainda tinham contato por telefone ou por vez ou outra ele ir à sua casa. Mas o vazio daquela casa antiga, com móveis rústicos e antigos, anunciava uma morte em doses homeopáticas e insuportável. Era uma contagem regressiva para partir e deixar tudo para trás.

      Com alegria. seu Arnesto abraçou a filha, que retribuiu prontamente, beijando-lhe a bochecha.

      - Que Deus te abençoe... - disse apenas.

      -Amém! - respondeu com um sorriso meia-boca.

      Ana Dorotéia, sua mãe, já estava no fogão preparando um belo almoço para a única filha viva, amada, mas em seu coração uma culpa a acompanhava desde seu nascimento. Já cansara de se ajoelhar e pedir perdão a Deus, mas a culpa já havia se infiltrado em seus poros e não sairia nunca mais. Preparava seu prato favorito: lasanha. E de sobremesa, sorvete.

      - Cadê os meninos? - perguntou-lhe o pai.

      - Daqui a pouco eles chegam.

      Seu Arnesto, desde a garagem, começou a contar sobre o que havia feito de diferente, a nova cor do ambiente, o sofá reformado por ele mesmo, os livros arrumados na estante, como Cecília sempre implicava pela bagunça, o quadro se destacando na parede azul da sala, pintado quando ainda era criança e que fora desprezado por todos, enfim, o entusiasmo não cabia no peito de seu Arnesto.

      Abraçou a mãe longamente e depois ouviu-a contar sobre a vizinhança. Não tinha muito o que falar sobre si, mesmo as dores agonizantes em sua coluna, não reclamava. Sua distração era a vida dos outros, dos vizinhos, da família, e pouco perguntava à filha sobre sua vida.

      Cecília se divertia ouvindo os causos. Olhou para a varanda e viu a mesa enorme, de madeira, que era de sua avó, toda empoeirada e cheia de quinquilharias. Lembrou-se de como eram animados os domingos em família, com todos os filhos jovens e muita falação durante a refeição. E das broncas de dona Ana, mandando-os lavar as mãos antes de enfiá-las na comida. Uma angústia abateu-lhe e disfarçadamente enxugou uma lágrima que escorria pela sua bochecha rosada. Aqueles momentos de outrora não mais se repetiriam. Faltavam os dois irmãos, que já não estavam mais presentes. Se deu conta de que a qualquer hora um dos pais ficaria sozinho e que era de sua responsabilidade cuidar deles até o fim.

      Olhou para a sala e viu seu pai sentado na poltrona grená preferida, com o olhar perdido, olhos embaçados pela catarata, boca semiaberta e murcha, barba por fazer e um pequeno tremor nas mãos. Outra lágrima escorreu. Disfarçou e foi até a mesa bagunçada e empoeirada e começou a tirar os objetos e a acomodá-los num canto da varanda.

      Dona Ana observava e preferiu não comentar nada. Sempre gostou de ditar ordens, mas hoje calou-se. Cecília ajeitou tudo e colocou uma toalha branca, depois os pratos, cada um de uma cor, restos de vários jogos antigos, presente de casamento dos pais, talheres novos e copos de requeijão. Tudo muito bem arrumado. Ao centro, ajeitou um vaso de plástico transparente com flores artificiais, empoeiradas e sem viço, que ficava na estante onde estavam os livros, agora organizados.

      Seu Arnesto continuava a pensar, sentado na poltrona. Não tinha muito assunto com a filha. Não esta filha, que fora distanciada por ele mesmo. Sempre deixou claro que os outros dois eram os preferidos, mas agora só Cecília estava presente em sua vida. Ela olhou o pai idoso e agradeceu a Deus por tê-lo perdoado. Não sentia mais rancor e nem desprezo, Compaixão e respeito eram as palavras ideais para descrever seu sentimento. A qualquer momento ele também iria embora, e poderia ir tranquilo e em paz.

      A campainha soou insistentemente, assustando seu Arnesto. Eram os netos, filhos de Cecília. Jovens alegres e de bem com a vida que iluminaram a casa dos avós. Dona Ana alegrou-se a abraçou-os apertado. Seu Arnesto, tímido e calado, abençoou-os e retornou à sua poltrona. Queria ficar quieto e absorver toda aquele momento de alegria, não tinha mais idade para ter estripulias de sorrir e quem sabe gargalhar. Observava tudo e em pensamentos agradecia por essa confraternização, talvez a última em sua casa. Não morreria em paz, pois a consciência não o deixaria, mas levaria consigo a imagem de uma mesa posta com carinho, cuidado e com a família novamente reunida, brindando a vida que lhe restava.

      A alegria dos netos, a música em um volume mais alto, a comida maravilhosa de dona Ana e a mesa novamente repleta de harmonia, tornou aquele domingo, talvez o último em família, o melhor de todos os tempos. Seu Arnesto e dona Ana não se lembravam da última vez em que foram felizes. A idade fez com que se esquecessem de momentos bons e só se lembrassem de saudades. Lembraram dos filhos não presentes e desejaram estarem em um bom plano espiritual, com Deus e com todos os parentes já falecidos. Olhavam para Cecília e respiravam aliviados, não por ser ela a última opção de uma velhice tranquila e sem solidão, mas por amarem incondicionalmente, mesmo não demonstrando durante toda a vida esse sentimento. E como um tapa na cara de pelica, ela acabou sendo a única opção que lhes restava. Não sabiam se ainda haveria tempo para demonstrar o amor de pai e mãe que ela merecia, mas o silêncio nos olhares falava mais profundamente do que qualquer palavra. Sentiram paz naquele dia.

      Cecília, ao se despedir, olhou fundo nos olhos do pai, beijou-lhe a bochecha e deixou a entender que tudo estava bem, que a mágoa não resistiu ao tempo, que o rancor fora quebrado e que o amor persistiu, apesar de tudo.

      Fim.

13 comentários:

  1. Tenso, denso...
    Fica a incógnita da filha tão mal amada. Só por ser mulher?
    Suas histórias me fazem pensar muito.
    Beijo, Clara.

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    1. A intenção é essa, de não apenas ler, mas pensar também.
      Esse incógnita fica por conta do leitor, mas se vc me permitir, digo que é por esse motivo sim, por ser um pai muito rígido e sisudo, nunca soube lidar com a filha, e a mãe ouvia muito dele pra não mimá-la muito e muito menos enchê-la de carinho. Com isso ela achou melhor não se aproximar tanto e não ter tanta intimidade. Triste.
      Beijos!

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  2. Instigante e lindo conto, como sempre!Adorei mais esse! Tu és demais, guriazinha! bjs, tudo de bom,chica

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  3. Seus contos são demais, Clara
    Eu nunca fiz preferencia entre os meus filhos
    Gosto dos três igual.
    Deixo um beijinho carinhoso para você.
    Verena e Bichinhos.

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    1. Algumas famílias são assim, sempre um filho se sobressai. É triste, mas existe, infelizmente.
      Um outro beijo carinhoso pra vc e seus peludos.

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  4. Clara, como suas histórias nos tocam! A descrição da casa desses pais lembrou-me muito a antiga casa de meus avós que hoje não mais existe. A atitude dos pais também lembram os antigos da minha família. Quantas histórias guardam uma família não é mesmo? Quantos segredos infiltrados nas consciências de todos! Amo tudo isso!
    Bjs

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    1. Naquele tempo a hierarquia familiar era levada muito a sério. O pai sempre tinha lugar cativo no sofá, na mesa, e geralmente o primeiro a se servir. Tinha que impor respeito, mas acho que todos tinham é medo e não respeito. E quanto podia se falar, não é? Imagina encontrá-los e perguntar tudo o que se tem vontade?
      Beijos, querida!

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  5. Você é Expert nesta estrutura Clara,gosto muito de seus contos,pela curiosidade que eles sempre deixam, como se tivessem algo oculto ou por dizer.
    Sinceramente que pensei que havia um segredo desta mãe e que a filha não seria do pai que estava na poltrona. Gosto disso Clara, deixar que o leitor fique a querer um final.
    Linda semana amiga.
    Meu abraço.
    Beijo

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    1. Ou então imaginar vários finais. Acho que na vida o único final é a morte, por isso tenho restrições pra finais.
      Linda semana pra vc também.
      Beijos, poeta!

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  6. Na Roma e na Grécia antigas, em que a descendência
    era tomada somente pelo lado masculino, poderia até se
    entender essa preferência por filhos homens. na atualidade
    não tem a menor razão de ser.
    Sempre torci por filhas, e fui agraciado com três, embora
    o primeiro viesse macho, afinal, são elas que, normalmente,
    cuidam dos pais na velhice destes.
    Beijos.

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    1. Concordo com vc, o que pode se deduzir que o motivo da filha ser rejeitada é outro e não por ela ser mulher. Pode ser também que o jeito desse pai é não saber demonstrar carinho por filha, por ser grotesco demais, arrogante e truculento. Há várias respostas pra esse final.
      Linda semana, Tesco, beijos!

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  7. Olá, querida Clara
    Saudade de passar por aqui e ler seus contos cheios de vida... instigantes e reflexivos..
    A alegria dos netos é um bálsamo pra todos Ernestos pela vida afora...
    Muito boas lembranças me trouxeram seu conto... lembrei-me da avó amada... algumas tias maravilhosas que tive...
    Bjm fraterno

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