segunda-feira, 18 de maio de 2015

Morreu Abreu


      Comoção no bairro, anúncio na rádio, alvoroço dos parentes e amigos: morreu Abreu. Estava trabalhando normalmente em seu pequeno comércio de secos e molhados, quando de repente caiu morto. Infarto fulminante. Tão novo e forte, mas não suportou essa rasteira traiçoeira.

      Muito querido por todos, sempre bom samaritano no quesito ajudar o próximo, não importando qual o próximo, desde que não seja os próximos de dentro de sua casa. Isso mesmo, mulher e filhos sempre ficavam em último lugar na lista de distribuição do sustento.

      Maria Emília, a viúva, casou-se por imposição dos pais, pois um dia pegou-os atarracados e com a braguilha da calça de Abreu aberta. Foi o cúmulo da indecência! Cidade pequena, já viu, não é? Seu Arnaldo, seu pai, preferia a morte do que ver a filha mal-falada na cidade. Cair na boca do povo era um crime bárbaro em seu conceito de pai de família e religioso ao extremo. Só beijou sua esposa, Dona Filomena mãe de Maria Emília, depois de casados. E sexo, só no escuro, com todo o respeito.

      Parecia carma de família, pois o pai de Maria Emília era grosseiro, tosco, estúpido, assim como seu marido, agora morto, Abreu. Pareciam pai e filho por se parecerem tanto e nos mínimos detalhes.

      Bem, mas agora Abreu era morto e nem sequer uma lágrima escorrera do lindo rosto, prestes a enrugar, de Maria Emília. Vestiu-se de preto, como manda os costumes, e de cara limpa, sem maquiagem, foi velar o corpo do defunto seu marido. Para disfarçar sua indiferença, um pouco de sombra escura em baixo dos olhos, como uma panda com insônia, ornava o quadro triste do velório no clube municipal da cidade.

      À medida em que ia se aprontando, lembranças visitavam sua mente. Não se lembrava quando fora o último beijo na boca recebido do marido. Era besteira e coisa de namorado, dizia ele, seco. Sexo, menos de cinco minutos e tudo estava resolvido. Não sabia nada dele, de seus amigos, seus risos, suas satisfações, nada! E ele, muito menos se interessava por conversas caseiras da mulher. Se estivesse tudo pronto e limpo, não passava de obrigação.

      Seus filhos, dois, Abmael e Abjeison, ainda eram pequenos e nada entendiam. Respeitavam Abreu por medo e não por amor. Não iriam ao velório por decisão da mãe, que agora tinha pátrio poder nas decisões que quisesse, a hora que quisesse. Abreu morreu e era sabido que um gordo seguro de vida esperava para ser sacado. Precisou morrer para dar conforto à família. Maria Emília sabia que os parentes viriam como urubus, esperando uma boquinha livre nesse seguro. Mas, apesar de quieta, sabia se defender muito bem. Não queria conversa com ninguém e o que Abreu já havia ajudado a todos era o suficiente para não perturbá-la mais. Cortaria relações, pela raiz, para poder finalmente ter sossego e poder falar de seus sonhos, suas vontades, seus desejos... E se Deus permitisse, não ficaria viúva por muito tempo. Logo mudaria seu estado civil para casada, ou seja, muito bem casada. Com quem? Com quem ela escolhesse.

      Ainda se olhando no espelho e fazendo caras e bocas para a encenação cadavérica de viúva sofredora e solitária, resolveu passar um perfume doce. E muito doce para que não a abraçassem tanto. Queria ficar quieta num canto, sem conversar e sem entrar na hipocrisia de transformar Abreu num santo. A essa hora já o endeusavam pelos quatro cantos da cidade. Como voam as notícias!

      Um irmão de Abreu ficou encarregado de levar Maria Emília até o velório. No caminho, vendo todo aquele verde das árvores e o colorido das fachadas das lojas, ela planejava sua vida. Trocaria suas roupas sóbrias e seus sapatos de saltos baixos, por cores, ousadias e sensualidades.

      Queria voltar no tempo, naquele portão de sua casa, onde há cinco anos, pelo entusiasmo de Abreu que cobria-a de beijos e desejos, promessas e loucuras, e continuar aqueles sonhos, sem ser interrompida por seu pai. Queria abrir a braguilha da calça de seu próximo namorado e continuar ali mesmo, o prazer interrompido. Mas antes viajaria com seus filhos, para a praia, pegar conchinhas e tomar batida de maracujá. Fazer castelos de areia e depois desmanchar com os pés, correr até as ondas e voltar correndo, antes que alcançassem seus pés. Queria viver, rir, gargalhar, comer e se lambuzar um cachorro-quente vendido na barraquinha que ficava no centro da cidade. O aroma invadia-lhe as narinas todas as vezes que iam à missa. Seus filhos chegavam a babar, mas Abreu não permitia certas regalias, pois nem era comida de gente.

      Chegaram. Na porta, Maria Emília parou por um momento, olhou em todos, abaixou a cabeça e foi até o caixão. Passou as mãos no rosto pálido de Abreu, depois nas mãos que seguravam um terço, puxou uma cadeira e ali permaneceu, de cabeça baixa, até a hora do enterro. Sensação de missão cumprida, obediência e infelicidade. Olhou em sua mão esquerda e as duas alianças no dedo anular ofuscavam-lhe a vista. Seriam guardadas como única recordação de um casamento imposto. Cumpriu todo o protocolo de boa viúva de um santo homem.

      Descanse em paz, Abreu, porque agora é hora de viver, pensou Maria Emília.

      Fim.  

15 comentários:

  1. Estou aqui na torcida que Maria Emilia encontre um marido que lhe faça muito feliz...rs
    Obrigada pela gentil visitinha,Clara.
    Tenha uma ótima semana, querida.
    Beijinhos de
    Verena e Bichinhos

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    1. Vamos torcer!
      Obrigada, querida, ótima semana pra vc tbm.

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  2. Rei morto, rei posto,rs

    E o Abreu, se escafedeu e se foi ele quem se .....!rs...


    Adorei te ler.Sensacionais os detalhes e tramas. Muito bom! bjs, tudo de bom,chica

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    1. Antes ele que eu, Chica!
      E viva a vida com seguro gordo! rsrs
      Beijos

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  3. Quantos "Abreus" e quantas "Marias Emílias" existem nesse mundo?!
    que sempre os opressores saiam de cena antes dos oprimidos, né?
    E os nomes dos filhos? De onde saíram? rs
    Beijo, Clara.

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    1. Lúcia, esses nomes aí é obra de Abreu, que tinha o ego inflado e queria inventar nomes exclusivos pros filhos. Coitados, né? rsrsrs
      Beijos

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    2. Clarinha, vc é genial, simplesmente.

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  4. Há quanto tempo eu não ouvia a palavra braguilha! Estou aqui na torcida para o seguro gordo e um outro amor bem diferente desse!
    Adorei tua criatividade. Envolvente do começo ao fim esse conto!
    Beijo.

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    1. Às vezes eu resgato uma coisa ou outra, e braguilha ainda é comum por aqui, Ana.
      Beijos

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  5. Acompanhei uma vida através das lentes de Maria Emília. Que delícia! Vou ficar na torcida para que finalmente seja feliz. Excelente conto Clara!

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    1. Ela vai ser feliz agora sim, com suas próprias escolhas. Coisas do interior, Roseli, por aqui ainda se vê isso.
      Beijos

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  6. Sempre escrevendo com muita criatividade. Dá gosto ler o que escreves.
    Feliz semana.

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  7. Oi, Clara!!
    Fim? Agora que a história ia começar a ficar boa!
    Ainda bem que as imposições familiares acabaram... Acabaram? :)
    Beijus,

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  8. Abreu morreu, viva Abreu!
    Povinho besta, ne?

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