domingo, 1 de maio de 2022

O ÚLTIMO DIA


Dez e pouco, a última refeição da noite foi servida, Dalila já estava deitada em seu leito 23B, o que ficava do lado da janela, quando olhou através das grades de segurança que faziam parte da janela. Sem nenhuma dificuldade levantou-se, chegou seu rosto bem perto da vidraça, quase tocando seu nariz, suspirou e observou cada detalhe que seus olhos alcançavam.

Não identificava muita coisa, pois estava sem seus óculos e o astigmatismo denunciava os borrões da paisagem.

"O mundo não para", pensou.

Havia uma sequência de luzes acesas, de várias cores, cobrindo todo aquele espaço em que lhe era permitido olhar. 

"Que coisa mais linda!", balbuciou. As luzes pareciam que haviam estourado, como fogos de artifício, e permaneciam carimbadas no ar. 

"Será que essa visão será a última que meus olhos verão?", pensou.

Não havia tristeza em seus pensamentos, nem lamentos, dores, arrependimentos, nem nada. Dalila apenas observava a paisagem como se fosse a última a ser olhada por seus olhos.

A enfermeira acendeu a luz e entrou, chamando a outra paciente do quarto. Dalila voltou-se num susto, ouviu o que ela disse, o que a paciente respondeu e depois voltou ao seu delírio na paisagem.

"Dizem que nos últimos momentos a gente assiste a vida inteira passando... Não assisti esse momento ainda... ", concluiu.

Dalila não sentia dores, nem estava presa a soro, e muito menos tinha alguma expectativa de alta daquele hospital que também não parava nem um minuto. Ela ficou impressionada com a sincronia dos funcionários do hospital. Tudo muito bem organizado e limpo.

Sua vizinha de quarto já havia caído no sono, pela respiração profunda que Dalila ouvia.

"Aqui não é tão ruim de ficar como muitos dizem... Talvez por eu não estar sentindo dores... E por não ser permitido nenhum acompanhante pra ficar cobrando resultados imediatos dos profissionais..."

Dalila lembra-se remotamente das declarações pré-mortes que lia de vez em quando. Se fosse seu último dia, que atitudes teria, o que falaria, de que se arrependeria, enfim, como se despediria desse plano, nesse planeta lindo?

"Eu ficaria quieta observando tudo ao meu redor, assim como estou fazendo agora... ", pensava, num suspiro.

Dalila não sabia qual seria o seu amanhã, talvez continuaria, talvez partiria pra outra dimensão ou teria alta... Quem responderia?

Ela continuou olhando pela janela os borrões coloridos pelas luzes da noite, e conseguiu enxergar, pelo barulho, claro, as gotas de chuvas que caíam timidamente. 

"Amanhã tudo continuará exatamente como está hoje, e eu continuarei, ou aqui ou lá... "

Seus olhos já pesavam, então deitou-se e logo adormeceu.

No dia seguinte foi acordada pela enfermeira, sorridente, chamando-a pelo nome, "Dalila", dizendo que o médico havia lhe dado alta.

Ela sorriu, agradeceu, foi orientada a esperar o café da manhã, a tomar um banho e depois chamar alguém para buscá-la.

Sim. continuou tudo como anteriormente. A vida não para, aqui e lá.


Clara Lúcia


terça-feira, 15 de março de 2022

O BAILE

 


Um pouco de romance...

Gentilmente Edu levantou-se, postou-se à frente de Vivi estendendo-lhe a mão, convidando-a a dançar. A música romântica era impossível de ser ignorada. Realmente difícil não ser contagiado pela melodia.
Vivi fechou os olhos e ficou alguns segundos sentindo a música, estendeu o braço apoiando sua mão na dele, abriu os olhos, sorriu, levantou-se, apoiou suas mãos nos ombros dele. Vivi sentiu sendo abraçada pela cintura e lentamente começaram a dançar no ritmo lento da música.
Ele olhava-a com amor, buscando cada centímetro do rosto dela, como se estivesse decorando pra nunca mais esquecer... Os olhos inquietos dele pareciam ler os pensamentos dela e ao mesmo tempo esboçava um leve sorriso por estar diante da mulher mais linda que seus olhos já puderam ver em toda a vida. Podemos dizer que o amor transbordava em cada centímetro deles.
Vivi sentia suas bochechas queimarem ao ser olhada de tão perto e tão profundamente. Edu tinha o corpo atlético, barbudo, nariz pontiagudo e com uma doçura e gentileza que só quem estivesse bem perto dele perceberia. 
Ela disfarçava olhando para os lábios dele, para o rosto, que era escondido pela barba, os cabelos, sobrancelhas e depois ousava encará-lo. Seus pensamentos se perdiam nos olhos dele...
Aos poucos ela foi se acostumando com a sensação de ser observada de tão perto, tão profundamente, ao ponto de esquecer-se que estava em um lugar público. Sentia seus pés tão leves como se estivessem tocando a areia fofa da praia, e o toque das mãos de Edu em suas costas lhe conduziam a uma viagem de entrega, com a respiração bem lenta, como se quisesse congelar aquele momento.
Aos poucos foram se aproximando cada vez mais, a ponto de quase se beijarem... Vivi fechou os olhos e praticamente ofereceu seus lábios. Edu, como um bom cavalheiro, apenas chegou mais perto, porém sem encostar seus lábios nos dela. Vivi abriu os olhos, sorriu e entendeu o gesto e apenas encostou sua cabeça no peito largo dele. A vida dela caberia todinha naquele peito forte...
A medida em que dançavam, mais ela se encaixava nele...
Edu, com cuidado, tocou os cabelos longos dela, bem no rumo de sua nuca, fazendo com que ela soltasse um suspiro profundo...
E assim permaneceram até o final da música, encantados. Continuaram abraçados enquanto os outros casais tomavam seus lugares nas mesas.
Já era tarde e Vivi concluiu que aquela seria a última música do baile.
Por fim se afastaram, conversaram algumas palavras, voltaram para a mesa e logo foram embora, juntos.

Às vezes nos esquecemos de sentir os momentos especiais, não importando o local, nem se estamos sendo observados. A vida nos proporciona momentos indescritíveis, maravilhosos, que podem durar apenas alguns minutos, praticamente o mesmo tempo de uma música, e nem percebemos.

Clara Lúcia



segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A ROSA DO LIVRO



Quando abriu o livro, um aroma adocicado com pitadas de poeira dançou no ar...
Lílian esboçou um sorriso, fechou os olhos tentando remeter os pensamentos até o nascimento daquela rosa amarela, que gentilmente acomodou-se dentro do livro por anos.
Lílian, com o livro aberto, sentou-se na poltrona que ficava perto da janela, onde mostrava um roseiral com brotos amarelos, despontando.
Era final de tarde e o céu em tons de vermelho alaranjado começava a retirar as sombras dando lugar ao anoitecer calmamente.
Lílian, sentada e com o livro apoiado sobre suas coxas, pegou a rosa seca e tentou tirar um pouco mais de perfume, porém parecia que o pouco que restava sumiu no ar ao abrir o livro.
Mais uma vez ela fechou os olhos e tentou encontrar os olhos dele...
Rapidamente fez as contas e já havia se passado mais de dez anos. Ainda conseguia sentir o tanto que aquele olhar penetrava em sua alma. Era como se lesse sua mente alcançando seus mais profundos desejos. Ela lembrou que ficava corada quando ele provocava isso nela.
Depois do olhar, um sorriso malicioso... E a aproximação para um beijo, somente um toque nos lábios, só pra provocar mesmo. Era o suficiente para Lílian sentir as pernas bambas e o estômago borbulhar. 
Nunca mais teve notícias dele.
Num impulso, pegou o celular e foi pesquisar na internet, em redes sociais, todos os lugares possíveis. Não encontrou nada. A morte lhe veio à cabeça. Será? Pensou ela.
Respirou fundo, disse a si mesma que era besteira pensar no mal, que ele poderia muito bem ter vida fora da internet, ou então usar um apelido, ou ter conta conjunta com alguém...
Mais uma vez mudou o pensamento, não queria quebrar o encanto daquele olhar que tanto a desestabilizava. 
Era o amor da vida dela, que não foi vivido, mas foi procurado em muitos outros olhares. Alguma coisa nos outros teria ele, e ela encontrava... 
Por vários momentos eles se topavam em algum lugar, e uma dessas topadas, ele a presenteou com essa rosa. Ou era em supermercado, em shopping, em alguma loja, na rua, e depois ficavam um bom tempo sem terem notícias um do outro. Até não ter mais notícia nenhuma.
Talvez fosse bom por isso, por não haver convivência por muito tempo. Não criou o hábito de reparar e criticar os defeitos. Talvez esse seria o encanto de amores da vida.
Lílian colocou a rosa dentro do livro, fechou e guardou ele na estante. Se é amor eterno, que seja guardado eternamente.
Lílian parou frente a janela e observou as roseiras, fechou os olhos e encontrou os olhos dele, penetrando em seu corpo, tirando seu fôlego, sua paz, a boca seca... Saudades.

Clara Lúcia



 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

UMA XÍCARA DE AFETO


  É incrível como o cheiro de chá exala até no portão de entrada! — afirmou Renata, ao abrir o portão da casa de sua nonna.
Nonna já esperava por ela, então a certeza de sair de lá alimentada por uns dois dias já era garantido.
O perfume do pão de queijo fazia companhia ao chá, "simplesmente o melhor aroma do mundo", pensava Renata, que entrava na casa com um sorriso aberto mostrando os dentes brancos e bem encaixados.
Lili, a pequena pequenês caramelo, a aguardava sentadinha no degrau da sala, como sempre fazia, e assim que a avistava, abanava o rabo e o traseiro, dando boas vindas. Nonna chamava lá de dentro da casa, pra Renata ir entrando que ela estava no fogão.
Era sempre essa a rotina de nonna pela espera por Renata, e também pelos "de casa" que tinham praticamente a entrada permitida a qualquer horário. 
Renata, após pegar Lili no colo, foi até a cozinha e deu um abraço demorado em sua nonna. 
Nonna, em seus 84 anos, pequenininha, viúva, morava com suas irmãs mais novas, também viúvas, e era daquelas que alimentava as pessoas. Carinho era alimentar todos que chegavam a ela, nem que fosse com uma laranja-lima apanhada diretamente da árvore de seu quintal. Por falar nisso, no quintal de nonna havia uma horta pequena, com variados temperos e hortaliças. Uma coisinha mais linda de se ver numa casa que mais parecida uma roça.
Na varanda havia um fogão à lenha que era apagado somente na hora de dormir. "Pra não demorar a fazer um chá pras visitas", repetia nonna.
O chão antigo, vermelhão, era encerado toda semana, e que brilhava lindamente, parecendo um espelho. Ah, quase me esqueci, o fogão à lenha foi feito por ela, a nonna, uns trinta anos atrás, e que foi elogiado diariamente pelo finado nonno.
Renata, após o abraço, ergueu o nariz pra sentir todo aquele aroma que existia na casa de nonna. Puxou uma cadeira e sentou-se, praticamente se jogando relaxadamente, sem nenhuma postura decente. Ali era o lugar que ela sabia que podia ser quem ela realmente era, sem precisar de pose ou de protocolos. Pegou um pão de queijo, que tinha acabado de sair do forno, rasgou-o com as mãos e jogou uma pelota de manteiga caseira dentro dele. "Dane-se a dieta, hoje nem sei o que é fazer dieta", repetiu várias vezes, com a boca cheia, tentando soprar o pão de queijo que já estava dentro de sua boca, queimando sua língua. Mas era assim que ela gostava.
Imediatamente nonna pegou a xícara de alumínio, com lascas descascadas pelo tempo, e encheu de chá de cheiro. Chá de cheiro, feito somente com água e açúcar, fervido até dar o ponto amarelado, bebido pelando, completando a queimadura da boca inteira. E era essa a sensação de infância duradoura de Renata. Como não amar nonna?
Depois de saborear três pães de queijo com bolotas de manteiga, Renata olhou para nonna com olhar cabisbaixo e disse que tinha acabado de perder o emprego.
Nonna, imediatamente disse a ela que era bom, sinal que lá não era o lugar ideal pra ela, e nem ganhava tanto assim pra ficar lamentando.
E lembrou Renata daquele sonho dela em abrir a floricultura e mostrar seus dons com arranjos florais. 
Renata riu e chorou ao mesmo tempo. Ficou olhando pra nonna e não sabia como iria suportar quando ela não mais estivesse por ali alimentando-a com seu afeto e seu chá de cheiro.
Levantou-se, abraçou nonna mais uma vez, deixando escorrer as lágrimas, depois sentiu Lili pular em suas pernas, querendo colo.
Eu bem sei o que a danada quer, é um pedaço de pão de queijo, não é, sua linda?
E, com a desculpa de satisfaze Lili, pegou mais um pão de queijo e rasgou um pequeno pedaço e deu pra aquela cachorrinha tão esperta e amada. 
Nonna continuou dando conselhos, dizendo pra ela que é besteira ficar lamentando o que já passou, que a vida acontece do jeito que tem que ser, e que basta focar em algo e ir atrás, que tudo daria certo.
Renata chorou, pegou as mãos enrugadas de nonna, beijou-as, alisou os cabelos brancos organizados num coque acima da nuca, perguntou se podia se deitar um pouco em sua cama e assim fez.
Renata dormiu abraçada ao travesseiro de nonna, por um bom tempo.
Acordou no começo da noite e sentiu vontade de não levantar, mas algo chamou a atenção, o aroma de feijão fresco.
Lá vou eu me empanturrar de arroz com feijão fresco, diretamente do paraíso culinário de nonna.
E assim fez, e nem calculou quantos dias de dieta teria que fazer pra compensar esse único dia de rodízio culinário da roça de nonna.
— Como não amar? — Renata se despediu de nonna, que, claro, preparou uma marmita com várias guloseimas, incluindo queijo, bolo de fubá, goiabada, doce de leito e pão caseiro. Praticamente uma semana pra se lembrar de nonna, sua sabedoria, seu carinho, seu afeto e sua gratidão.