Ainda estava chuviscando quando Helena saiu de casa, batendo a porta de casa, sem rumo. Estava cansada da vida e não queria mais voltar para aquele lugar onde simplesmente a maltratavam. Eram cobranças e mais cobranças, humilhações, palavras grosseiras, xingamentos...
Sentada na calçada e arrepiada de frio várias lembranças lhe vieram à mente. Como no dia em que sua mãe trancara-a no galinheiro, quando passavam o fim de semana na chácara, com o Sol do meio-dia a queimar-lhe a pele branca, sem água, por um longo período. Helena ficava sentada num canto observando a vida das galinhas. Ciscavam, olhando para os lados e depois bicavam algo que achavam no chão. Depois se ajuntavam num canto com sombra fresca e ficavam cochilando. E como um relógio londrino pontualmente se empoleiravam em seus devidos paus para passarem a noite. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto quando a mãe finalmente lhe permitiu voltar para casa. De cabeça baixa andava sem pronunciar nenhuma palavra. Entrava no quarto e se jogava na cama. Mas sabia que era tempo suficiente para sua mãe entrar e lhe mandar tomar banho, pois onde já se viu deitar na cama fedendo a galinheiro? Mais uma vez obedecia, calada.
Sem saber que aquele lugar era perigoso, Helena continuava, chorando, de cabeça baixa. Carros passavam, buzinavam, mexiam com a garota e até ensaiavam uma parada para conversar com ela. Sorte que nunca acontecera nada com a jovem. Como dizia sua mãe, apesar de todas as agressões, que seu santo protetor era forte e estava sempre de prontidão porque por ela já estaria morta e enterrada.
Helena não entendia o motivo de tanta agressividade. Ainda distraída sentiu um arrepio quando uma mão tocou-lhe o ombro. Olhou e não viu ninguém. Levantou-se e começou a caminhar, ainda de cabeça baixa e olhando para trás o tempo todo. Sentia que estava sendo seguida. Acelerou os passos. Começou a correr e atravessou a rua sem olhar para os lados. Não percebeu que um carro vinha em alta velocidade. Antes de chegar na metade da rua, tropeçou e caiu. As rodas passaram rente a sua cabeça arrancando-lhe alguns fios de cabelos. Helena levantou-se assustada, ofegante e começou a chorar compulsivamente. Um vulto, uma luz clara estava a sua frente e lentamente foi sumindo. Chorou...
Na calçada olhava para os lados sem entender o que acabava de acontecer e correndo voltou para casa. Antes de entrar ouviu sua mãe desesperada ligando para a delegacia dizendo que sua filha havia sumido, que era sozinha e que não podia perder a única coisa preciosa que tinha no mundo. Helena se escondeu e chorou mais ainda. Viu a mãe sair aflita no portão e gritar seu nome. Limpou as bochechas encharcadas de lágrimas, saiu do esconderijo e se colocou frente a sua mãe.
Compulsivamente a mãe correu e lhe abraçou, mas em questão de segundos empurrou-a e começou a lhe dar tapas na cabeça, xingando-a de vários nomes, alguns novos, outros antigos, outros tão ofensivos que Helena tapou os ouvidos, entrou e se trancou em seu quarto. Um sussurro lhe fez arrepiar, dizendo-lhe: "Aguente firme, falta pouco...". Helena levantou-se e ficou encostada na parede, num canto, olhando cada canto daquele pequeno cômodo úmido e bagunçado. Apenas uma cama velha e um guarda-roupas sem uma das portas mobiliavam seu quarto. A luz era fraca para evitar o desperdício, como dizia sua mãe. Uma pequena janela mal ventilava e mal dava para entrar os raios de Sol.
Helena se assustou com os murros que sua mãe dava na porta, mandando-a abrir pois merecia uma surra maior. Amedrontada, Helena escorregou o corpo na parede e sentou-se, abraçando as pernas. Deitou a cabeça nos joelhos e chorou como uma criança indefesa. Sentiu uma mão acariciar-lhe a cabeça. Arrepiou, se levantou assustada e abriu a porta. Preferia enfrentar a surra da mãe do que lidar com o desconhecido. Abraçou-a, dizendo que amava-a, e que não faria mais isso, que não mais fugiria. Clotilde, a mãe, ainda tentando se desvencilhar do abraço inesperado da filha, cedeu ao apelo indefeso e chorou também. A impressão que Clotilde tinha era que a pequena Helena não havia crescido, que ainda era aquela pequena gorduchinha de cabelos cacheados, amorosa, querida, indefesa, que num certo momento de fúria de seu falecido marido, ficou no meio dos dois numa briga. O pai estava armado e ela, calmamente, mesmo com pouca idade, conseguira tirar-lhe o revólver e este, sem querer, disparou direto em seu coração. Morte instantânea. Apesar das constantes ameaças e das surras, Clotilde defendia o marido. Era um homem bom quando estava sóbrio, dizia para todos. Um dia ele para de beber e tudo fica na paz, repetia incansavelmente, como um mantra, na esperança dos céus ouvirem e lhe concederem essa graça.
Por uma bênção de Deus Helena não se lembrava desse dia. Clotilde se sentia perturbada até então, pois o grande amor de sua vida, mesmo que agressivo, lhe fora arrancado assim, por uma criaturinha tão indefesa.
Clotilde se rendeu ao abraço carinhoso da filha e chorou... Pediu perdão a Deus, e a ela. Mentalmente, pois ainda não se sentia capaz de dizer palavras doces naquele momento. Era um começo, uma redenção, uma libertação. Questão de tempo para viverem bem a partir daquele dia.
Clotilde se tornou mais serena, mais tranquila e casou-se novamente, com o dono da barbearia em que seu marido frequentava. Não o amava, mas era uma pessoa decente, calma, metódica e respeitadora. Uma vida tranquila e sem novidades para as duas. Helena ainda tinha crises de choro, ainda se assustava com clarões, com barulhos estranhos, com mãos geladas, com arrepios, mas sabia que com o tempo tudo sumiria, ou então aprenderia a lidar com seus pavores mesmo nunca mais ter sentido a presença do desconhecido, da mão no ombro, do afago na cabeça e nem dos sussurros.
Fim.
P.S. Eu não terminaria o texto dessa forma, decifrando tudo, mas sei que muitos ficariam indignados e curiosos, então aí está o final, redondinho.
Em meio a tantos desencontros acaba encontrando uma forma de amor, enfim, às vezes sem saber! abração
ResponderExcluirQuem tem o amor no coração não sabe ser de outro jeito. A menina é pura, amorosa e só soube dar amor, apesar de tantas agressões e fatalidades.
ExcluirAbraços, amigo!
Puxa, um texto lindo e forte e ficou legal o final! Gostei! beijos,chica
ResponderExcluirAssim o pessoal não fica curioso, Chica, redondinho e com final. rsrsrs
ExcluirBeijos, lindona gaúcha!
Clara você arrasou nesse conto! Que história! Dá para desenvolver e virar um grande romance menina. Pensa nisso com carinho! Você tem uma história e tanto nas mãos!
ResponderExcluirBjs
Sim, Roseli, tenho várias histórias nas mãos. Aqui só fragmentos que perfeitamente podem ser desenvolvidos. Tudo a seu tempo... vamos ver o que me aguarda...
ExcluirObrigada, querida, sempre carinhosa comigo! É recíproco! Beijos
Muito forte, gostei que "arredondou" o final. rs
ResponderExcluirMuita dor para uma pessoa carregar, cruzes!
Beijo, Clara.
Cada um com sua dor, Lúcia...
ExcluirSe eu não termino o texto assim, redondinho, ficam furiosos, curiosos... rsrsrss
Beijos, querida!
Mais do que querermos um final, queremos um final feliz para quem merece, né? A curiosidade é normal e saudável. Porque não deixa uma estória com reticências e lança o desafio aos seus leitores para a terminarem? Seria bem interessante.
ResponderExcluirBeijos, uma doce semana
Ruthia d'O Berço do Mundo
Gostei da ideia, Ruthia... vou elaborar um texto assim e quem quiser que continue.
ExcluirBeijos, querida, uma linda semana pra vc também!
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirClara,que bonita história! Amor de mãe e filha sempre vence! bjs,
ResponderExcluirAnne, uma ligação muito forte entre as duas com um remorso no meio... Ainda bem que tudo deu certo, né? rsrs
ExcluirBeijos