sexta-feira, 9 de maio de 2014
Uma Mão, Um Mistério
No trajeto de seu trabalho até o velório municipal Giordana não pronunciou nenhuma palavra. Dirigiu concentrada na visão que teria quando chegasse perto daquele caixão. Será que estaria lacrado?
Professor de Direito Penal, Dr Sílvio era um homem sério, idoso, rígido nas suas aulas/palestras e que não gostava de ser interrompido até que tivesse concluído sua oratória. Uma inteligência fora do normal e um tanto excêntrico. Sempre vestia terno, impecável, e um detalhe chamava a atenção de todos. A mão esquerda sempre, sempre estava dentro do bolso da calça. Nunca se soube de alguém que teria visto sua mão esquerda. Será que tinha a mão esquerda? Era a pergunta geral. Do mesmo modo não havia ninguém que tivera a coragem de perguntá-lo o porquê da mão estar sempre no bolso. Não ousaria jamais. Não se sabe se pelo respeito ou pelo medo de encará-lo numa pergunta pessoal e ser fuzilado com aqueles pequenos olhos verdes. Melhor soltar a imaginação e tirar as próprias conclusões do que nadar e morrer na praia com uma resposta que poderia muito bem se transformar num trauma para o resto da vida. Quiçá até ser motivo de uma provável renúncia de uma carreira promissora, como a do Dr Sílvio.
Giordana aproveitou o horário de seu almoço quando há mais vagas no estacionamento do velório e, sem pressa e perda de tempo, em rodar várias vezes à procura. Estava sozinha. Os outros alunos de sua turma iriam à noite. No fundo Giordana estava mais curiosa do que triste pela morte do querido mestre. Querido nem era o termo adequado, mas admirava-o muito sugando-lhe todas as palavras, tomando-o como exemplo e espelho como um excelente profissional. Se apaixonara pelo Direito depois da primeira aula ministrada por Dr Sílvio, mesmo divagando vez ou outra tentando decifrar como seria sua mão. Às vezes ficava imaginando-o levando um tropeção e tendo a necessidade de se apoiar nas duas mãos. Como se sairia? Rolaria chão abaixo mantendo a esquerda firme e segura em seu bolso? Os mais zombeteiros sempre se maginavam puxando-lhe o braço para acabar com a agonia de todos de uma vez. Mas cadê a coragem? Dr Sílvio se dava o respeito e de certa forma não permitia a aproximação demasiada dos alunos. Melhor deixá-lo quieto com sua mão misteriosa, pensavam e entravam em comum acordo. Bom para ambas as partes, assim era feito, brincavam, imitando a voz do advogado renomado e misterioso.
No caminho entre o carro e a sala onde estava sendo velado Dr Sílvio, Giordana se sentiu sem chão. Um vazio lhe invadiu a alma que a fez chorar. Não queria entrar na sala e passar vergonha, aos prantos, com quem nem sequer era da família. Não sabia quem era a esposa, ou mesmo se havia uma esposa e filhos, e quem sabe netos também. Não conhecia ninguém da família. Já havia planejado tudo; entraria e desejaria os sentimentos para a mulher ou a pessoa que estivesse sentada na cadeira perto do caixão, que sem dúvidas seria a pessoa mais próxima de Dr Sílvio. Olharia em seu rosto e depois em suas mãos. Ou ao contrário? Não importaria, mas olharia, faria o nome do Pai, encostaria num canto e permaneceria em silêncio, em respeito, como fazia em todas suas aulas de Penal.
Parou na entrada da sala a avistou grande parte de uma outra turma da Faculdade e alguns professores. Entrou, procurando não fazer barulho com o salto do sapato. Não havia ninguém sentado perto do caixão. Nem cadeira havia por perto. Se aproximou, de cabeça baixa, segurou o choro e olhou para a feição endurecida do professor. Sempre achou esquisito a feição de um morto. Tinha a sensação de que abriria os olhos bem na hora em que olhava-os. Estava bem maquiado, corado, sem algodão nas narinas e vestindo um terno cáqui, com gravata verde. Crisântemos brancos escondiam qualquer vestígio dos cantos do caixão. Aconchegaram a mão esquerda do lado do corpo e cobriram com as flores. A direita estava sobre o ventre, como geralmente acomodam os defuntos. Uma certa decepção tomou conta de Giordana. Olhou para o lado e se viu olhada pelos outros alunos que ali estavam. Todos com cara de interrogação, porém todos em silêncio. Olhou novamente para a mão direita, respirou fundo e se afastou.
Talvez tenha sido melhor assim. Existem situações que são melhores não serem desvendadas. Que seja enterrado todo esse mistério da mão esquerda do professor, que sempre será lembrado, pelo homem íntegro, postura exemplar e inteligência fenomenal e, claro, pelo mistério de sua mão esquerda, jamais revelado.
E sua família? Não tinha! Era solteiro e sozinho. Pena... Penal.
Fim.
Escrevo sobre a vida e os momentos específicos emocionais.
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Clara e agora? Vou morrer também levando esse mistério não resolvido? rsrs Amiga adorei ler mais esse conto. Você é boa nisso viu! Bjs
ResponderExcluirMistério aguça a gente, Roseli, eu gosto! E fico com a imaginação a 1000 tentando decifrar... rsrsrs
ExcluirBeijos, querida!
Então, nem eu sei, Mauj... vamos todos morrer e levar a curiosidade pro túmulo.
ResponderExcluirBeijos, meu querido!
Pena que não consegui descobrir a razão desta mão no bolso, Clara...rs
ResponderExcluirTe desejo um Feliz Dia das Mães, querida
Beijinhos de
Verena e Bichinhos
Não tinha mão, mas tinha um pouquinho de braço? Mistério mesmo...Enfim, somos mesmo curiosos, eu tb haveria de querer ver se havia uma mão ou não...
ResponderExcluirLindo texto, como sempre, Clara.
Beijo!