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quarta-feira, 2 de abril de 2014

Minissaia


      Se deitou e apagou as luzes. Se virou para o lado em que ficava o criado-mudo onde guardava um punhal na gaveta. Faltava-lhe coragem e força para fazer o que mais tinha vontade. Pensava nos filhos, ainda pequenos, dependentes de cuidado, de carinho, de base decente, de mãe, de pai... Pai é quem coloca no mundo?

      Rui era um bom pai, disso não se podia negar, mas só quem o conhecia entre quatro paredes sabia dizer exatamente como era aquele monstro disfarçado de homem de bem. Maria do Rosário sabia do que se tratava, mas a falta de coragem também lhe impedia de soltar aos quatro ventos quem realmente era o marido que um dia jurou amor eterno, respeito e fidelidade perante o padre. O melhor dia de sua vida, um sonho realizado, uma família que começara no instante do sim. Talvez o último dia de sonhos e ilusões.

      Entraram na nova casa com Rui carregando a amada nos braços e reclamando de seu peso que nem era tanto assim. Talvez faltava-lhe disposição e força muscular para executar com carinho o que deveria ser de livre e espontânea vontade. Não queria saber dessas frescuras de lua de mel. Queria mais era tirar os sapatos apertados, o paletó quente, se jogar na cama e dormir...

      O vestido todo branco, com o corpete rendado, decote discreto era fechado nas costas com pequenos botõezinhos encapados com o mesmo tecido. Pequenas pérolas ornavam sinuosamente a linha da cintura terminando num bico abaixo do umbigo, e uma sutil calda em tule bordado arrastava pelo chão. Um laçarote em cetim arrematava a delicadeza do vestido de noiva escolhido a dedo por Maria do Rosário e sua mãe.

      Rui, com muita dificuldade, fechou a porta com o pé e despejou Maria do Rosário na cama. Arrancou os sapatos, a roupa e ficou só de cueca. Maria do Rosário nunca havia visto um homem só de cuecas! Corou. Fez questão de se manter casta como a Virgem Maria e honraria o sacramento até seus últimos dias. Seria mulher de um só homem e o amaria eternamente.

      Foi delicado, paciente, atencioso, carinhoso... Um perfeito cavalheiro.

      Sete anos depois o que era doce se acabou. Rui esquecera de todo aquele romance, de todo o cuidado, carinho e não demonstrava amor pela mulher.

      Toda noite quando Maria do Rosário se deitava rezava para que o marido não a procurasse. Não suportava a tortura de satisfazer seus caprichos. Parecia um bicho que atarracava em sua presa que nem um banho de água fria seria capaz de interromper seus desejos. Não havia conversa que o convencesse que alguns dias ela não se sentia disposta. Todo dia era dia de se fartar. Afinal mulher tem que cumprir suas obrigações de esposa. Se não tem em casa procurava em qualquer lugar, pois mulher é que não faltava para satisfazer um homem.

      Ela tinha medo e vergonha de ter que passar por tanta humilhação, mas não confiava em ninguém para contar suas intimidades. Não suportaria a hipótese de ficar falada ou de ser julgada como fria e que não fora capaz de satisfazer nem o próprio marido.Numa de suas consultas rotineiras com o ginecologista chegou a comentar que não conseguia sentir prazer, que não havia lubrificação e que era dolorido todas as vezes. E com um sorriso de matar ele apenas completava "é, mas depois fica bom, não fica?". Se no próprio médico não podia confiar imagina para uma pessoa conhecida? Talvez o problema seria dela, como Rui sempre dizia, que era frescura, falta de tesão e que ela deveria se dar por satisfeita por ter um marido como ele. Era travada e fria!

      Mal conseguia abrir as pernas e lá estava ele, com seu bate-estaca a lhe perfurar até o útero, fazendo sangrar e se deliciando com as lágrimas que escorriam dos olhos da mulher. "É tesão, mulher, relaxa!". Muitas vezes não suportando a dor Maria do Rosário gritava, enchendo Rui com mais prazer fazendo com ele tapasse sua boca só para ver a agonia em seus olhos. "Prazer sem dor não combinava com mulher. Mulher precisa sofrer para poder dar valor ao que tem", repetia, enquanto sufocava Rosário.

      Depois do ato consumado, Rui se virava para o outro lado e dormia... Satisfeito...

      Maria do Rosário esperava ouvir o primeiro ronco e chorava, quietinha, tapando a boca com o travesseiro, segurando o soluço para não fazer movimento no colchão e despertar a ira do valente e destemido Rui. Vez ou outra abria a gaveta do criado-mudo e pegava o punhal. Apertava-o no peito e pensava em suas crianças. "Não, eles não merecem uma tragédia dessas...", e guardava-o de novo.

      Sete anos de casamento, seis anos de tortura sexual, um segredo guardado, um pecado prestes a ser cometido, ou melhor, um crime passional.

      Depois de uma noitada regada a bebida, Rui voltou para casa. Maria do Rosário já estava deitada, fingindo dormir. O punhal não estava em seu lugar costumeiro. Rui se jogou na cama e mais uma vez se fartou. Rosário chorou, olhando para o lado, enfiou sua mão debaixo do travesseiro e pegou o punhal. Num movimento em que Rui erguia o corpo esticando os braços, Rosário colocou o punhal entre eles. Ele se abaixou com tudo e ouviu o grito da mulher. Como estava bêbado não percebeu o objeto pontiagudo entrar na mulher, rasgando-lhe a carne. Sentiu mais prazer olhando sua cara gritando de dor até desmaiar. Mesmo assim continuou, pois ainda não estava satisfeito. Só depois quando saiu de cima de Rosário é que percebeu a mancha de sangue no lençol. Se assustou e chamou por ajuda.

      Rosário estava bem, sedada, e por sorte nada de ruim aconteceu, pois encaixou o punhal bem próximo à cintura o que não lhe perfurou nenhum órgão vital. Rui responderá por crime de lesão corporal e não sabe como isso pode acontecer, afinal sempre foi o marido dos sonhos de qualquer mulher.

      Fim.

      Um texto de ficção, mas com muita realidade, pois mulheres também são estupradas por seus maridos. Fraqueza? Não, nem sempre a mulher sabe o caminho para sair de situações de tortura, principalmente de quem deveria amá-la e cuidá-la até o fim.


6 comentários:

  1. Puxa, que fortes palavras, situações aqui trazidas. Tu escreves muito bem e acredito que nenhuma mulher deve se acostumar, achar natural situação assim! O amor é pra ser feito a dois, com prazer para ambos, sem dor!! beijos,chica

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    1. Nenhuma mulher deve se acostumar, mas muitas não contam pra ninguém o que passam... e vivem uma vida inteira sofrendo...triste!
      Beijos

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  2. Clara, você retratou aqui uma realidade bastante comum no passado, mas que a sociedade faz de conta que nunca existiu. Existiu sim, as mulheres passavam horrores nas mãos de seus 'amores', tudo em nome de uma sociedade "familiar". E atualmente, em muitos lugares do Brasil, (no interior), elas ainda passam, sofrem caladas, chantageadas, pressionadas pela falta de acesso ao conhecimento. Esse tipo de violência que você descreveu, não é novidade para mim, pois no passado, advoguei um bom tempo no direito de família e então, eu ficava sabendo de muitas coisas, verdadeiras atrocidades, num país em que as leis só beneficiavam os homens. Se não fossem as feministas lutarem, ainda continuaríamos com aquelas leis atrasadas, pois as mulheres, coitadas, simplesmente não tinham coragem de levantar a cabeça, não tinham cultura, educação, dinheiro... ih, menina, faltavam tantas coisas... Querida, seu texto está maravilhoso, sensível, incisivo, bem como esse assunto deve ser tratado. Bjs Marli

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    1. Um horror, Marli, mas muitas mulheres ainda permanecem presas ao casamento e ao único homem que tiveram. Eu fico horrorizada, mas o que podemos fazer, se elas não abrem a boca pra denunciar?
      Lindas suas palavras, Marli, muito obrigada!
      Beijos

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  3. Muito bom seu conto Clara, super realista e, bem como a Marli disse acima, ainda acontece no Brasil, infelizmente.
    As coisas melhoraram, um pouquinho, nestes últimos anos, mas o machismo, principalmente na região N/NE segue acontecendo, para que este problema fosse solucionado seria importante a educação para as massas, muito mais que religião, pois isso já tem um monte por aí afora, né mesmo?
    umgrande abraço carioca

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  4. Clara uma triste realidade, que infelizmente, ainda vivemos, você retratou numa ficção, a situação de muitas mulheres que se calam, por medo das reações e por vergonha de ser tão impotente. Abraços carinhosos
    Maria Teresa

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