Ela pegou a tesoura, ajuntou um tufo de cabelos entre os dedos e cortou. Sem dó e sem se olhar no espelho. Seus cabelos longos e brilhantes não fariam mais parte da imagem de seu espelho. Não queria mais se olhar daquele jeito, não naquele momento de raiva, da vingança aflorada em sua pele, daquela cara lavada e sem expressão nenhuma. Também mudaria a cor. Preto. Ou então loiro, bem amarelo.
O cabelo ficou todo despontado, mesmo que a intenção fosse desfiado. Como desfiar a parte de trás da cabeça? Que importância teria se os fios ficassem todos desorganizados se era justamente assim que Valerie se sentia? Tem gente que chega, devolve a vida e sem mais nem menos desestrutura, e some... "Mas se está pensando que vou ficar um doce de pessoa, está muito enganado, meu caro!" Falava para si, quase que sem abrir a boca, apertando os lábios enquanto provocava o voo de mais alguns fios ruivos.
Pronto, outra mulher. Não mudaria a cor dos cabelos, mas ninguém a reconheceria , nem por fora e muito menos por dentro. Nunca mais seria aquele anjo de candura sempre pronta a ofertar o que lhe pedissem. Cabelo arrumadinho, perfume doce, salto médio, blusa abotoada, não mais! A leoa sairia de dentro de Valerie e ganharia o mundo. Pelo menos essa seria a intenção.
A vingança de uma mulher iludida e abandonada não tem limite. E que bom que tudo acabou. Já estava cansada de ser o que era e queria mais era desfilar toda poderosa na frente daquele desinfeliz do Zuza. Daria a unha do mindinho para vê-lo de boca aberta vendo-a andar no meio da multidão onde todos virariam o rosto para admirá-la. Queria ter um olho na nuca para vê-lo se arrepender por tê-la deixado sem nenhuma explicação, depois ir correndo lhe implorar perdão e só encontrar o seu desprezo.
Umas compras estranhas no shopping, roupas escuras e esquisitas que não tinham nada a ver com sua personalidade, sapatos pesados, coturnos e até uma boina militar ela foi capaz de comprar, mesmo sabendo que jamais usaria um treco daquele. Tudo questão de costume, pensava, não queria mesmo ser comum na multidão. Se era para causar, causaria susto em quem a visse. Nada de óbvio, comum ou correto. Queria ser a torta, a ousada, a sensual, a ovelha negra, a do contra.
Suas lindas unhas de porcelana, perfeitamente pintadas com esmalte transparente, foram cortadas "no toco", como dizia sua avó, e pintadas de preto. Sem aquelas frescuras de florzinhas meigas e fofas.
E toda montada foi desfilar nas ruas movimentadas de sua cidade, num dos lugares preferido do cascudo Zuza, ponto de encontro dos amigos e, claro, da mulherada dando sopa para quem quisesse. O ódio aumentava só em pensar nessas mulheres alisando seu Zuza. Não iria sozinha, Cíntia, a amiga cobaia, teria que participar do ato mutatório na vida de Valerie... Irreconhecível, era a palavra que a definia.
Mal conseguia olhar para frente de tanto que a encaravam. Simplesmente se sentia como um ET fora de seu planeta. Agarrou o braço de Cíntia e começou a andar mais rápido, fugindo daquela situação constrangedora.
"Cíntia, estou tão estranha assim?" Perguntou. "Sim, está parecendo uma lunática fora do eixo da Terra." Respondeu a amiga, sorrindo.
"Val... Vaaaaal...", parou, levantou a cabeça e assustada olhou para trás. "Zuza..." ficou toda sem graça ao ver aqueles olhos azuis que mais pareciam um oceano misterioso, aquele sorriso que derrubava qualquer TPM de tão poderoso e aquela camisa com botões abertos exibindo um tórax ossudo e peludo se aproximar. Ficou aliviada por não estar usando salto agulha naquela calçada de pedras encaixadas uma a uma, com fendas entre elas, daquelas que descascam qualquer sapato que se encaixasse ali. Se lembrou de tantas e tantas vezes que Zuza carregava-a no colo só para não estragá-los, deixando-o praticamente sem fôlego andando somente meia quadra. Ela ria e beijava-o ternamente declarando todo seu amor. Ele respondia que teria troco e dos graúdos.
Zuza, pela milésima vez, disse que sentiu e sentiria seu cheiro de longe, no ar, na outra rua, na outra cidade, no outro planeta, esse que ela acabara de sair toda modificada. "Te cataram para experiência, amor?" Perguntou, pegando em suas mãos, beijando-as e logo em seguida puxando-a para um abraço apertado. Encontraria Val mesmo ela estando disfarçada de mulher invisível ou de bruxa da Branca de Neve.
Riram abraçados e Cíntia logo foi saindo de fininho. Não queria posar de vela para o retorno do casal maravilha.
Zuza se afastou de Valerie, pegou suas mãos e fez com que rodopiasse para ver melhor a transformação da amada. "Mas ficou muito linda!" Exclamou, voltando a abraçá-la. "Mas é só a casca do ovo. Por dentro - colocando a mão em seu coração - continua a mesma doce leoa de sempre". E beijou a boca, as bochechas, a ponta do nariz, os olhos e mordeu de leve seu queixo. "Saudades da minha bravinha teimosa..." Pegou sua amada e se foi para um lugar mais discreto observar detalhadamente a nova mulher que tinha.
E Valerie? Claro, se derreteu com o amor de sua vida. Fazer o quê se mulher tem essa fraqueza de cair na conversa um milhão de vezes? E ser amada um trilhão de vezes pelo mesmo homem? Mas se engana se alguém pensou que ela esqueceria de tudo. Claro que não! Tudo armazenado em ordem alfabética e por data, para, na primeira oportunidade, lembrar o canalha do Zuza, com quantas gotas de perfume se faz uma mulher irresistível.
Fim.
Curioso Clara... sabe que assisti à dois filmes essa semana em que duas mulheres fortes aparecem cortando os cabelos devido a raiva por causa de homem. Um foi o filme sobre Frida Kahlo, o outro sobre Edith Piaf.
ResponderExcluirÓtimo conto.
Bjs
Edith Piaf é uma ídola pra mim!Adoro! Mas não sei de sua história... gostei desse detalhe...
ExcluirObrigada, querida!
Beijos
Uma taransformação e um recomeço, assim às vezes acontece.
ResponderExcluirVocê escreve cada vez melhor.
Beijos, Élys.
Transformar é sempre bom, ajuda na autoestima e às vezes atrapalha, mas é bom sim!
ExcluirObrigada, Éliz,sempre gentil!
Clara, me vi nesse texto. Certa vez briguei com uma certa pessoa e fiz exatamente isso. Cortei quase zero e mudei minha conduta também. Acho que muitas mulheres passam por essa fase. Bem simbólico. Amei o texto! Beijos
ResponderExcluirRoseli, mulher é um bicho estranho mesmo... quer mudar logo, sem pensar... e às vezes funciona, às vezes naõ.. já me arrependi de ter cortado os cabelos por impulso. Ficou um horror! Mas cresceu logo, ainda bem.
ExcluirBeijos
Leoa é assim: 8 ou 80 e nada menos.Valerie deu uma guinada na imagem só esqueceu-se de fazer o mesmo com o coração;ah, esse espelho revelador...
ResponderExcluirGostosa leitura a deste conto vibrante, Clara. Bravo!!!
\0/ Abração,
Calu
Calu, mudar o coração é muito difícil, ainda mais quando existe amor dentro dele... praticamente impossível quando esse amor é correspondido...
ExcluirAbraços, beijos, querida!
Fui lendo..lendo...me envolvendo...desconhecendo a autoria. Será dela mesma? Será quem é o (a) autor (a)?
ResponderExcluirCada vez melhor, mais limpo, mais bem escrito, Clara.
Você está pronta. Selecione alguns e mande para as editoras. Tá na hora.]
Beijo, maninha. Levo fé em ti!
Lúcia, minha maninha querida do coração...
ExcluirEsse é um projeto futuro, ainda tenho que me aperfeiçoar em algumas coisas, ler mais alguns livros e ter grana pra me aventurar no mundo do "estou escritora". Hoje em dia é muito fácil publicar um livro, por isso ainda não o fiz. Mas chegará esse dia, com certeza...
E, olha, não tem preço que pague o carinho que tenho dos leitores... isso me enche de carinho e vontade de escrever mais e mais!
Beijos
Maravilhoso Clara! Adorei o conto! Está na hora do livro, menina!!!!!
ResponderExcluirInfelizmente ainda tem um número bem expressivo de leoas de mentirinha que se deixam levar por gostosões e no final, acabam tendo que procurar auxílio profissional no consultório dos psiquiatras! Bjs Marli
Estou estudando esse livro. Ainda tenho muito que aprender... mas um dia sai. Esse é meu foco!
ExcluirObrigada, Marli, querida!
Beijos
É bom, clara e simplesmente, ler a Clara, pois ela expressa o que sente. Suas personagens são vividas antes de chegar ao papel (ou tela), não são apenas
ResponderExcluirescritos os sentimentos e emoções que "parecem ser assim", ou "devem ser assim".
Não, percebe-se que a emoção vem de dentro, não é 'enxertada' no personagem,
nasce dele realmente.
Esse sentimento de revolta, que gera um movimento reverso na vida das pessoas,
é necessário e, muitas vezes, as atinge inesperadamente, como um acidente,
para que possam mudar de direção ou de itinerário em sua vida.
Não é que "há males que vêm para bem", mas "todo mal vem para o bem"!
Beijos.
Tesco, assim vc me emociona!
ExcluirMuito obrigada por ter me enchido a alma de satisfação!
Um belo domingo e uma ótima semana!
Beijos
Clara, bom quando muda por fora e por dentro, p/ melhor...
ResponderExcluirBela, o filme sobre Piaf é muito, muito triste, gosto muito dela, vale a pena assistir!
Bjooooooo