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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
VenceDora
Dona Beatriz, que Deus a tenha, acertou em cheio na escolha do nome da filha. Dora, de venceDora. É a palavra ideal para definir essa mulher nos seus últimos tempos.
O tempo passa e a hora de partir vai ficando mais próxima... Um dia a menos de vida, uma lágrima que nem escorre mais, uma dor num lugar que nem se imaginava existir... Mas a dor maior é a da solidão do fim dos tempos. Dói... Como um canivete cego que tenta cortar uma carne mole e não consegue... Para lá e para cá, forçando e apertando até abrir uma fissura que não sangra e que linha e agulha não costuram. Fica exposta, ao tempo, até definhar de vez.
Ainda tem boa saúde, sua visão é de uma jovem e só usa óculos para ler as letras miúdas. Sua mente guarda coisas que nem o mais potente computador se lembraria, e é lucida. Que orgulho que Dora tinha de sua lucidez!
Aos poucos e em doses homeopáticas presenciou a partida de gente querida... Primeiro seu pai, depois sua mãe, que teve todo o carinho de Dora até os últimos momentos. Solteirona assumida, mas não por vontade própria. Apenas ficou esperando um homem especial que se esqueceu de aparecer na sua vida. Ainda hoje quando sai por aí e se encontra com algum amigo dos bons tempos fica imaginando se não seria ele sua alma gêmea. Combinavam tanto... E não passou de uns olhares mais penetrantes. Logo se casou com outra e hoje tem uma penca de netos.
Dora continuou cuidando, amparando, curando, ouvindo... E o tempo passou. Sem filhos, com sobrinhos todos encaminhados por aí e sobrinhos-netos sem paciência para responder as perguntas da tia solteirona que fica apertando suas bochechas. Uma linda idosa que não tem para quem contar as várias histórias de sabedoria que todos idosos têm. Quem sabe ainda dê tempo para escrever num caderno tudo o que achar importante, e num dia qualquer, depois de sua morte, algum curioso antes de doar seus pertences abra o caderno e se encante, pelo menos com a caligrafia desenhada. Seria demais imaginar um livro sobre sua vida. Todos têm um livro embutido chamado vida. O de Dora é mais um que logo ficaria eternizado numa estante, perdido em alguma casa de algum parente.
Seus olhos azuis eram expressivos, penetrantes, instigantes. Contam as más línguas que Dora tinha o dom de ler os pensamentos. Bastava olhar fundo e ela descobria algum segredo que ninguém imaginava. Às vezes descobria até o que estava para acontecer. Os longos cílios deitavam em suas bochechas quando fechava os olhos. Os cabelos grisalhos se encaixavam harmoniosamente em cachos minúsculos, como se fossem moldados todas as manhãs. As rugas de expressão denunciavam dia após dia que a contagem regressiva caminhava a passos ligeiros. Até hoje perguntavam porque não casara. Porque não, respondia. Já se achava no direito de não dar explicações de nada sobre sua vida. Já estava no fim e quem quisesse saber que perguntasse para os mais velhos.
Num sábado nublado, Dora acordou e não quis se levantar. A cama quente e a luz fraca do abajur eram seu aconchego. A cortina florida balançava suavemente com a brisa que entrava pelas frestas da janela. Nem quis saber que horas eram, queria ficar quietinha e conversar com Deus. Um monólogo torturante de quem não suportava mais ouvir a própria voz e nem ver a própria imagem no espelho. Esperar mais o quê, meu Deus do céu? Já cumpri minhas obrigações por aqui cuidando de irmão mais novo, de pai e de mãe, então que me leve logo para um outro lugar, onde não sinta tanta dor na alma como sinto neste quarto, nesta casa... Indagava a Deus e nem uma lágrima se atrevia a escorregar pelo rosto.
Ficava imaginando fechar os olhos, dar um último suspiro e aos poucos o corpo ir padecendo, órgão por órgão, até o último cessar. O coração. Este que já suportou tantas dores de desaforos, tanta discriminação por simplesmente não ter gerado vidas em seu ventre, tanto descaso por ser uma idosa... Outro dia ouviu sem querer de uma sobrinha adolescente que gente ruim também envelhece e que nem todos velhinhos são bonzinhos. Será que falava dela? Preferiu nem saber. Se afastou sem fazer barulho e foi se sentar no alpendre da velha casa de seus pais que agora era sua. Não por direito pois sabia que esperavam sua morte para fazerem a partilha. Olhava as samambaias, penduradas na parede, com as folhas que caiam como cascata até encostarem no chão, verdinhas, sem nenhuma folha seca que lhe tirasse o frescor. Quem aguaria suas plantas quando ela se fosse?
Um estorvo. Não dependia de ninguém e exatamente por esse motivo não a enfiaram num asilo. Se morresse naquele minuto talvez, quando dessem por sua falta, já estaria em estado de putrefação. Quem sentiria sua falta?
Ainda deitada ouviu o relógio da sala tocar dez badaladas. A campainha tocou e Dora ficou se perguntando quem seria naquela hora? Ninguém batia em sua porta. Pela curiosidade pediu licença a Deus, colocou um robe e foi ver quem era. Um vendedor de pamonha, quentinha e com queijo! Ah, mas que delícia comer pamonha e morrer! Chegaria satisfeita nos céus. Quantas vezes ralou os dedos junto com as espigas para fazer pamonhas, numa das muitas reuniões de família! Comprou quatro. Duas comeria agora e as outras duas à tarde. E se morresse depois de comer duas como havia programado? Bem, se chegassem a tempo poderiam comer as outras duas.
No caminho da rua até a cozinha parou na sala e ligou a TV como sempre fazia pela manhã. Quando se deu conta estava sentada no sofá com o prato com as pamonhas, comendo tranquilamente e assistindo ao seu programa favorito. Riu e olhando para o teto conversou com Deus:
- Mas o Senhor é porreta mesmo, heim, meu Pai? Eu queria morrer, lembra? E olha o que o senhor coloca na minha frente: pamonhas! Tá bom, depois conversamos sobre uma outra data para eu morrer.
Fim.
rssssssss....Que troca boa DORA fez! Pamonhas em lugar da morte!!ADOREI!!! bjs,chica
ResponderExcluirUma boa troca mesmo, Chica! Quentinha e com queijo? Gente, eu adoro!!!
ExcluirBeijos, gaúcha, uma linda semana pra vc!
kkkk tudo tem o seu tempo certo de acontecer.
ResponderExcluiradorei a troca.
bju
É uma troca justa, né? Morrer é pra sempre e pamonha não! Então que a pamonha seja primeiro! rsrsrs
ExcluirBeijos!
Muito bom, a motivação está sempre ao alcance de quem valora o viver.
ResponderExcluirbjs
Deus não falha nunca! E vai dar um jeito de colocar companhia pra Dora, quem sabe um amor que viva com ela até seus últimos dias? Eu adoraria!
ExcluirBeijos, Norma
oi!
ResponderExcluirVim de lá da Calu e gostei muito da história de Dona Dora e Dona Bia.
Pamonhas: AMO e falei mais ou menos delas por lá essa semana, desse viver miojo que hoje se cultua, não me representa, sou do tipo que vivo por pamonhas...rsrsrs
Prefiro a demora, a costura das folhas ou amarradinho, aroma e sabor delas
Café coado no coador de pano novinho, costurado por vó, com bolinhos de chuva para acompanhar a pamonha e comemorar nosso encontro, com vasilhinha com um tantinho de cada para Calu :)
Que delícia tudo isso! Adoro tudo isso! Tudo muito caseiro, muito caprichado e muito gostoso! Saudades desse café nesse coador de pano, bolinho de chuva da minha avó... ôoo tempo mais delicioso!
ExcluirBem-vinda, Tina!
Beijos, linda semana!
Boa tarde, Clara. Vim do blog do amigo e poeta Toninho conhecer o seu.
ResponderExcluirNão esperava esse final interessante.
Ela já estava cansada com os dias longos na Terra, mas quem resolve isso é Deus, tanto que lhe deu um presente saboroso e não o amargor da morte, ainda que todos tenhamos de provar do mesmo, mas importante é, que sempre tenhamos a vontade de ver os nossos dias prolongados com felicidade.
Sempre haverá uma coisa para sermos e se fazermos por aqui.
Tenha uma semana de paz!
Beijos na alma!!!!!!!!!!!
Patrícia, bem-vinda!
ExcluirQue bom que gostou. Toninho é um poeta querido...
A morte tem hora marcada e parece que não é depois de comer a pamonha, eu acho... rsrsrsrs
Beijos, linda semana!
ai que demais! me emocionei com a Dora, com suas dores normais na velhice, todavia o final foi leve... bjs
ResponderExcluirFoi, ainda bem. Nem deprimida ela era, então não motivo pro final ser diferente. Só estava se sentindo só... e aí chegou a pamonha!
ExcluirBeijos
Lindooooooo!!! Clara me emocionei demais com essa doce senhora Dora! Que mulher! Amei o final que deu. Deus é porreta mesmo!
ResponderExcluirBjs
Roseli, eu conheço uma senhora assim e esses dias encontrei com ela na rua e senti tristeza nela... Isso é real, mas fazer o quê? Deus toma conta, sempre!
ExcluirBeijos
Essa conversa pode sempre ser adiada por mais uns dias :) Linda e doce essa idosa, mas como deve ser triste envelhecer tão só. Sabe o que lhe faltava? Amigas para conversar...
ResponderExcluirBeijinho, querida
Ruthia d'O Berço do Mundo
É sim, mas acho que as amigas são todas casadas e ficam com suas famílias... Muito triste mesmo!
ExcluirBeijos, querida, boa semana!
De agora em diante, está mudado: em vez de "salvo pelo gongo" será "salvo pelas pamonhas"! Parabéns Clara, você escreve, menina! Adoro seus textos! Agora, please, me dá uma pamonha? Só uminha, tá? Bjs Marli
ResponderExcluirObrigada, Marli!
ExcluirTe dou pamonhas sim, quentinhas e com queijo derretendo.. .não com aquele pedacico de queijo, mas com um pedaço generoso dentro dela... hmmmmmmmmm também quero!
Ótimo conto, Clara, e o melhor, bem contado.
ResponderExcluirAgora, quando o vendedor passar por aí, avisa pra ele dar uma chegadinha aqui.
Nunca comi pamonha com queijo, estou com água na boca!
Beijos. manda
Tesco, pamonha com queijo, quentinha... hmmmmm,. é tudo de bom!
ExcluirO recado será dado!
Beijos