Participando do Projeto Bloínquês - Contos
Oi, pai, sou eu! Será que me ouve? Dizem que quem está sob efeito de anestésico, ouve o que acontece por perto. Eu creio que me ouve sim porque o efeito já está passando e o senhor já começa a abrir os olhos; por isso estou aqui para lhe falar um pouco, já que quando estava bem não tínhamos um bom diálogo. Bem, esse não será um diálogo e sim um monólogo. Acho que só assim para o senhor ouvir sem me olhar com essa carranca fechada.
Não sabemos quanto tempo o senhor vai ficar por aqui, mas lhe asseguro que os médicos estão fazendo o possível para o senhor sair dessa, com a saúde boa e ainda com uns bons anos pela frente.
Pois é, meu pai, o fim da vida. Como é se sentir no fim da vida? O que o senhor vê e sente quando olha o passado? Foi difícil, né? Isso todos nós sabemos e sentimos na pele, dia a dia, convivendo com o senhor que sempre fez questão de despejar em nós toda sua amargura e rancor. Agora me responda, meu pai, resolveu alguma coisa? Os problemas se resolveram, as pessoas mudaram, o mundo evoluiu de acordo com o que o senhor tanto pregava? Não, nós sabemos que nada mudou por conta de seu rancor.
A mamãe sofreu muito esse tempo todo e vez ou outra eu a pegava chorando pelos cantos, magoada, por ouvir desaforos que o senhor lhe despejava, lamentando a falta de sorte de não ter tido uma vida como desejava. Mas já lhe passou pela cabeça que a vida não foi como planejava porque o senhor sempre alimentou esse rancor de uma vida difícil, enquanto os outros irmãos, meus tios, sempre tiveram "sorte" na vida e batalharam para conseguirem o que tinham vontade? Foi isso que aconteceu! Eles viveram a vida deles, enquanto o senhor ficava assistindo e se esqueceu da sua própria vida. Sorte deles? Não! Trabalho, batalha, sonhos realizados, tudo isso é progresso na vida de qualquer um. Eles são gratos, que eu sei, pelo senhor ter sido o homem da casa e sustentado todos, enquanto ainda era muito jovem e eles pequenos. Mas o senhor insiste em dizer que todos lhe devem muito. Devem o quê?
Lembro uma vez em que tio Daniel veio lhe mostrar o carro novo e o senhor sequer se levantou do sofá para ir lá conferir e parabenizá-lo. Ao contrário, ficou reclamando com a mamãe o porquê todo mundo tinha carro novo menos o senhor. Depois pegou o fusca e bateu num poste acabando com ele e quase com sua vida também. Que culpa tem mamãe e o poste?
Vou lhe dizer uma coisa, meu pai, eu não gostava de sair em família. Não suportava o senhor praguejando tudo o tempo todo, como se todos fossem culpados por tudo. É muito ruim ficar perto do senhor, é muito ruim conviver com uma pessoa que só reclama e fala mal das pessoas, como se tivesse a verdade absoluta na ponta da língua, é horrível ter que ficar perto de uma pessoa que não tem um mínimo de senso de humor e condena até quando os outros se divertem. Meu pai, estou aqui só para lhe dizer isso.
Está na minha hora de sair, mas espero, de coração, que o senhor tenha entendido tudo o que eu disse. Eu sei que o senhor entendeu, pela lágrimas que escorrem de seus olhos.
Ah, só mais uma coisa: ainda há tempo para mudar esta situação. O senhor ainda tem vida, é forte e vai se recuperar. Ainda há tempo de olhar para trás e ver as coisas boas que o senhor plantou e esquecer o que de ruim aconteceu. Aconteceu porque tinha que acontecer; não tem volta. A vida é daqui para frente. Olhe ao seu redor e veja quanta luz, quantas cores, olhe seus netos crescendo, olhe para a gente e retome a família. Mas se modifique antes, colocando um sorriso no rosto e um amor no coração. Nós todos lhe amamos e queremos muito o bem do senhor.
Então é isso. Já vou indo. Fique com Deus! A sua bênção.
Fim.
Olá Clara, bom dia. Todos nós conhecemos pessoas assim. Parabéns genuínos por este texto. Um abraço.
ResponderExcluirOlá, Manuel, bem-vindo!
ExcluirSão pessoas tristes que não sabem conduzir a própria vida.
Abraços!
Forte demais este texto...me vi em certos momentos dizendo a mesma coisa.
ResponderExcluirPois é, Patrícia, às vezes não nos damos conta de muitas coisas... infelizmente!
ExcluirBeijos
Gosto muito da intensidade do seu discurso.
ResponderExcluirCadinho RoCo
Obrigada, Cadinho, é sempre bem-vindo por aqui!
Excluirótimo sábado! beijos
Que lindo conto e pARTICIPAÇÃO.bOM TE VER NO pROJETO! BEIJOS PRAIANOS,CHICA
ResponderExcluirEstou gostando muito desse projeto, Chica!
ExcluirCompartilhar um mesmo assunto de várias formas, é muito bom!
Beijos interioranos, querida!
Clara Lúcia,
ResponderExcluirtudo bem?
Em primeiro lugar quero te agradecer pela visita ao meu blog, também estou seguindo o teu!
Um conto muito intenso e de caráter intimista, pensei uma série de coisas... sobre as impossibilidades, que o tempo não volta mais, e a vida é breve, mas sempre resta a esperança.
Muito sucesso no bloinquês!
Beijos e ótimo fim de semana!
Bem-vinda, Cecília!!!
ExcluirÉ exatamente isso! A vida passa e não tem volta!
Obrigada!
Beijos
Olá Clarinha!
ResponderExcluirParabéns pelo conto. De facto está muito intenso. Faz reflectir.
Uma pergunta, qualquer pessoa pode participar neste projecto Bloinquês?
Obrigada.
Um beijo,
Cris Henriques
http://oqueomeucoracaodiz.blogspot.com
Cris, a vida passa e às vezes não nos damos conta...
ExcluirObrigada!
Te respondi lá no seu blog. Beijos
A Cris do blog "O que o meu coração diz" falou-me deste conto. Impressionante como me revi em algumas dessas situações.
ResponderExcluirParabéns escreves muito bem, gostei e vou-te seguir.
Beijinho
Idália Henriques
http://falandocomosmeusbotoes.blogspot.com
Bem-vinda, Idalia...
ExcluirMuito obrigada pelo gentil comentário...
Vou retribuir, com certeza.
Beijos
Pois é... estou vivendo isso, só que sem a doença!!!
ResponderExcluirQue triste....
ResponderExcluirMas enquanto há vida, hé esperança e há como mudar, qdo se quer.
Beijos
Mais um texto lúcido e forte como, de resto, a Clara nos vem habituando. E quem não conhece alguém assim? Eu mesma tenho um familiar muito parecido com esse pai que vc descreve.
ResponderExcluirBeijinho querida, uma doce semana, e parabéns por participar em mais esse desafio.
Ruthia d'O Berço do Mundo
As vezes as pessoas passam pela vida e deixam o melhor por viver.Simplesmente passam e deixam um rastro de amargura, que nem no leito de morte se prestam a rever.Seu texto foi feliz na construção dos persosnagens num belo dialogo/monologo,que faz refletir, sobre o que pesa e vale nesta vida.
ResponderExcluirVivamso pelo amor e com amor, alegria no coração e doação do melhor de nós sempre.
Aplausos Clara, belo trabalho criativo.
Um abração de paz e luz.
Bjo