quinta-feira, 4 de julho de 2019

O Farol

 

   
      Ele me achou... E eu fugia por uma estrada comprida, levantando as saias de meu vestido que, vez ou outra, me faziam cair na terra úmida por causa da chuva da manhã, cobrindo meus joelhos com lama. Rapidamente me levantava e continuava correndo. Olhava para trás e ele continuava a me perseguir, quase me alcançando.

      O vento frio de outono cortava meu rosto e jogava meus longos cabelos cacheados para trás, esvoaçantes balançavam em harmonia e tapavam meu rosto quando eu virava para trás para espiar a distância que eu estava dele... Corria, como se minha salvação dependesse da velocidade dos meus pés e da força de minhas pernas. Já estava escurecendo e minha angústia aumentava a cada passo em falso que dava e tropeçava em alguma pedra solta pela estrada. Não tinha para onde me esconder. De um lado da estrada um abismo com o mar azul escuro aumentando a maré e batendo nas pedras espalhando espuma branca por toda a orla. Do outro lado uma floresta fechada, um labirinto arriscado e misterioso, digamos ser medonho pelos barulhos estranhos que ecoavam a noite toda, chegando até o pequeno vilarejo.

     Mathias, um vilarejo novo, habitado por pescadores e homens das florestas, como assim eram chamados pelos viajantes comerciantes que apareciam por lá. Havia apenas uma rua principal e as casas, todas simples e rústicas, feitas de pedras e forradas com troncos cortados de árvores, unidos harmoniosamente um ao lado do outro, com acabamento de uma cola artesanal que impedia as goteiras e ao mesmo tempo, proporcionava um frescor no interior das casas. A única moradia mais bem-feita e ornamentada era do chefe-guardião, que tudo via, tudo sabia e era obedecido por todos. Era o deus de todos. Tinha o poder de ler os pensamentos, descobrir ovelhas desgarradas, apontar para algum malfeitor, julgá-lo e condená-lo em questão de segundos. O respeito que todos tinham por ele era, na verdade, o medo de descobrirem alguma teimosia ou algum descuido no trato com os animais. Estes eram sagrados. Era um homem alto, com mais de dois metros de altura, forte, cara amarrada, grotesco, de poucas palavras e muitas ações. A ordem no vilarejo era invejada por muitas cidades maiores ao redor, mas quando se tratava de Nêumo, o chefe-guardião, preferiam ficar longe de sua vidência.
   
     O homem me perseguia, eu gritava, mas a voz embargava. Comecei a ficar ofegante e meus passos diminuíram. O homem me alcançou, puxou-me pelos cabelos fazendo com que meu corpo encurvasse para trás. Olhou bem nos meus olhos e sorriu com sarcasmo. Eu cuspia em seu rosto e apertava seus olhos com os polegares e mesmo assim e ele me beijava a boca. Nojo! Limpei meus lábios com o braço, esfregando várias vezes, tentando tirar o gosto de álcool com hálito quente daquela boca carnuda e asquerosa.

      Ele me puxava pelos cabelos arrastando-me pela estrada até chegar num atalho que seguia direto para o farol, que ficava à beira do mar. Este estava bem agitado.

      Naquela época, mais precisamente em 1832, as jovens eram sacrificadas quando não queriam se casar com os homens que as escolhiam. Se revoltavam, se rebelavam, mas de nada adiantava. Acabavam mortas, ou enforcadas, ou lançadas num penhasco que tinha o mar como chão. 

      Era para esse lugar que o homem forte, bonito, mas nojento, vestindo roupas mal cheirosas, cabelos pretos e longos, barbudo e um nariz comprido e pontiagudo que parecia o bico de um papagaio, me levava.

      Me segurava pela cintura com um dos braços, me apoiando em seu corpo fazendo como o que meu pendesse e anulasse qualquer possibilidade dele receber um golpe meu, proporcionando-me liberdade. Eu gritava, mas minha voz continuava embargada; então ele repetia várias vezes, mas sem precisar gritar, para eu ficar quieta. Eu me debatia, tentando me livrar de seus braços, mas a força do homem era infinitamente maior que a minha.

      Ainda me segurando pela cintura subimos a escada em forma de caracol e chegamos ao topo do farol. Grandes janelas nos mostravam o céu com algumas estrelas e alguns raios de sol do outro lado. O mar batia nas pedras e fazia um barulho que penetrava em minha mente, como se me esperasse para o derradeiro mergulho em suas águas geladas e profundas. Sussurrava e lançava gotas até chegarem à janela que me aguardava ansiosa por minha queda. Um vento gelado uivava competindo com o barulho das ondas, entrava pelas janelas e esvoaçava nossos cabelos, quase que entrelaçando-os, num balé de quase fim de ato.

      O homem me levou até uma janela que ficava do lado mais fundo do mar, segurou meu rosto e me mostrou a linda paisagem. Cochichou alguma coisa no meu ouvido, mas que não conseguia
entender, com sua enorme mão me segurando o queixo, virou bruscamente meu  rosto de frente para o seu e mais uma vez me beijou fortemente. Mordi seu lábio inferior que sangrou, então ele se afastou e me deu um tapa no rosto, ainda me segurando firme pela cintura, com seus longos braços entrelaçados. Eu me debatia, mas estava praticamente imóvel e exausta. Ele começou a me xingar, mas eu não conseguia entender nada do que ele dizia. Sabia que estava xingando pela expressão de ódio em seus olhos. Mais uma vez ele segurando  meu rosto, mostrou-me a paisagem que seria a última visão que eu teria. Eu tentava gritar e não conseguia.

      Num movimento rápido, ele me ergueu  e apoiou-me no parapeito da janela. Olhei para baixo e senti vertigem. Gritava, mas era inútil. Mais uma vez ele cochichou algo no meu ouvido e me empurrou para o abismo.

      Neste momento, gritei tão alto que minha voz ecoou. Segundo a segundo eu via aquele homem se distanciando de meus olhos enquanto eu caía. Um frio tomou conta de meu corpo, meus cabelos longos taparam meu rosto antes mesmo de meu corpo tocar o mar agitado. Parecia que a queda não teria fim. Sentia falta de ar, como se minhas narinas estivessem fechadas e meu grito abafado tivesse cortado minha garganta impedindo a saída do ar. Fui caindo e desfalecendo. O barulho do mar era cada vez mais forte, mas já não me importava com a morte. Queria a morte de uma vez por todas. Praticamente já sentia as gotas do mar respingando meu corpo. Abri os braços e me entreguei! Por uma última olhada, de relance vi, na outra janela do farol, Nêumo, com seu olhar frio e calculista. Entendi tudo.

     A Lei cumpriu seu destino. Mais uma desobediente a ser esquecida no vilarejo Mathias. Quanto à força de um homem, um olhar instigante e tudo se acaba. O fim foi consentido e determinado.

     Caia no mar agitado e não fazia questão de sobreviver, nem se houvesse um milagre.




     Clara Lúcia