segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Barulhinho


      - Me diga, Dra Camila, não existe um aparelho sem esse barulhinho medonho não?

      - Existe, só que é três vezes mais caro, e ainda não tenho previsão pra comprá-lo.

      Tá bom então. Mais uma vez me deito na poltrona, mais parecida como uma cadeira erótica daqueles vídeos... Bem, isso não importa. Respiro fundo e cruzo os braços. Dra Camila se prepara, como se fosse a um desfile da paz, toda de branco, com luvas, máscara e óculos. Num piscar de olhos já está sobre mim com aquele espelhinho que não sei qual o mistério que há nele que não embaça de jeito nenhum. Se embaça, creio eu que ela enxerga muito bem. Logo depois vem os palitinhos a cutucar meu dente. Dessa vez foi o lá de trás. Ainda se sentindo desconfortável ao me manipular, aperta um botão, depois outro e outro e estou praticamente de cabeça pra baixo na cadeira. Sinto meu estômago empurrar meus pulmões, mas vamos em frente.

      Mais um suspiro e Dra Camila se distrai com a secretária que lhe conta algo que não entendo. Piadas internas de consultório. Elas riem e imediatamente a doutora se concentra em minha boca aberta.

      A secretária Valéria, também com a máscara, liga o sugador e coloca no canto de minha boca. Sinto que minha bochecha, pelo lado de dentro, é sugada até fazer um côncavo do lado de fora. Imediatamente ela ajeita e o aparelho volta a chiar normalmente. Fecho os olhos e clamo por Jesus, pra que não me abandone nessa hora de angústia. Sei que Ele está por perto segurando minhas mãos, que nesse momento estão grudadas nos meus antebraços, como se eu estivesse pendurada num penhasco e eu mesma me segurando pelo braço pra não despencar. Aperto tanto as mãos que parecem estar hermeticamente presas aos meus braços.

      Dra Camila liga o tal aparelho barulhento e começa a tortura. Ah, mas antes ela enfiou uma agulha com anestesia na raiz do dente danificado. Vontade de morder a bochecha e não sentir nada, mas como a boca está aberta, isso nunca é possível fazer. Ela me pergunta se está tudo bem, eu afirmo que sim, mas é só um gesto involuntário da cabeça, por dentro estou numa angústia sem fim. Então, com o aparelho ligado começa a cutucar meu dente. Gente, pra quê ter dente se com o tempo temos que passar por tortura? Por que o dente não é como uma unha, que estraga, cai e nasce outro, infinitamente, até a morte? Mas, quem sou eu pra questionar a obra de arte do Altíssimo, né? Continuando com aquele barulhinho, fecho os olhos de novo e tento não pensar onde estou. Penso em quem numa hora dessa? Vou pensar em comida, que é um grande prazer que eu tenho. Não dá! Penso... Melhor continuar respirando e contar os minutos pra tudo acabar bem.

      Nossa Senhora, onde está a Senhora que não vem cuidar dessa sua filha que só tem tamanho? É claro que ela está por perto, caso aconteça a passagem já estará ali me esperando de braços abertos. Não, melhor pensar em trabalho, em planos, em contas...

      Fico de olhos fechados na esperança de tirar um cochilo e acordar quando tudo estiver acabado, mas que nada! O aparelho britadeira continua a percorrer o assoalho do meu dente, cavucando até chegar na China do meu queixo. Bendita anestesia que me dá tranquilidade de não sentir dor nenhuma, mas o que incomoda é o barulho, esse sim, não é de Deus. Nem dá pra dar uma olhada nas horas pra saber se já passou muito tempo ou se ainda falta muito tempo pra acabar...

      Num minuto relaxo e a imagem daquele homem lindo, amigo querido, tudo de bom aparece na minha mente... Ele me olha e sorri, consigo relaxar as bochechas parece que as duas mãos de Dra Camila estão dentro de minha boca. Volto pro rapaz que continua sorrindo pra mim, olhos brilhando... Aquele sorriso lindo... E me animo a continuar o tratamento sem reclamar pra poder beijar aquela boca carnuda e deliciosa... opa, isso é história pra um outro texto.

      Percebo que Dra Camila começa a encher minha bochecha de algodão. Sinal que o aparelhinho terminou seu serviço. Um jato de ar, uma cutucada aqui, outra li, uma mini pá pra misturar o reboco e pronto, tudo colocado dentro do buraco do dente. Respiro quase aliviada. Depois ela coloca um aparelho roxo em cima de mim, liga uma luz intensa, soa três sinais e pronto. Retira os algodões, enche minha boca de água e o sugador é percorrido por todo o lado. Não fica nenhuma gota. Vez ou outra é encostado na garganta. Fico com medo da secretária querer enfiá-lo guela abaixo, só pra ter certeza que não ficou nenhuma gotinha de água por lá. Pior, e se me der ânsia nessa hora? Enfim, nada aconteceu.

      O sugador é desligado. Sinal que a tortura acabou. Abro os olhos e Dra Camila diz que está prontinho, que acabou, que talvez o dente doa no outro dia, mas que tudo ficou perfeito. Que bom! Imagina ter que cutucar ele de novo, noutro dia? Imagina ter que arrancá-lo e ficar com aquele espaço vazio? Nem poderia sorrir mais! Tento desgrudar minhas mãos dos antebraços e imagino que tenha até feito aquele barulho de destampar algo com sucção. A cadeira volta ao seu lugar normal, a luminária é apagada e tenho certeza que irei embora.

      Primeira coisa, morder a bochecha do lado onde foi anestesiado. Será que só eu faço isso? É claro que ela vai doer quando acabar a anestesia... Mas é a bochecha e não o dente.

      Como é que um aparelhinho tão pequenininho, tão indefeso pode mexer tanto com a gente? O problema não é o aparelho e sim o barulhinho medonho que ele faz. Às vezes tenho a impressão que a anestesia vai acabar assim, do nada, e ele, com vida própria, vai enfiar fundo no nervo do dente me levando ao desmaio ou coisa pior. Bem, pra isso Nossa Senhora fica ali de guarda. Imagine então que a Dra espirre e não dê tempo de desligar o aparelho e com isso ela perfure toda minha língua e estrague todos os dentes ao redor. Imagina?

      Pra quem acha que tudo isso é exagero, é sim, exagero. Pessoa ansiosa pensa exatamente assim, mesmo quando a gente tenta se controlar ao máximo. Eu nem sabia que era ansiosa até ler sobre o assunto. Esquisito, mas nossa mente não para nunca e uma coisa puxa a outra e no fim acontece só o primeiro ato, a primeira cena e acaba ali mesmo.

      Algum leitor é ansioso também?

      Me lembrando aqui que meu primeiro emprego foi como secretária de um dentista... tsc, tsc, tsc...


4 comentários:

  1. Era eu nessa cadeira...rsrs
    Muito bom de ler, flui, uma delícia. Beijo, Clara.

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  2. Adorei ler e detesto a cadeira, o barulhinho e o ambiente ,rs bjs, chica

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  3. Oi, Clara!
    Gostei muito da sua maneira de escrever... até fiquei a reativar o E-Library, que está lá, paradão rsrsrs.
    Gosto muito do meu dentista (como pessoa).
    Mas, sempre saio tensa do consultório e não é só o "barulhinho", É TUDO rsrsrs... mas sempre volto lá... É NECESSÁRIO.

    Abração
    Jan

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  4. Clara, quase senti o pânico da moça na cadeira de dentista. O texto está muito vivido. Parabéns!
    Felizmente nunca passei muito tempo nesse tipo de locais.
    Beijinho, boa semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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