quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Quando Os Olhos Falam


      Já passava das das vinte horas quando Lívia começou a se despedir de todos à mesa para ir embora. Imediatamente Lucas a puxou pelo braço e pediu que ficasse mais um pouco. Eram amigos há alguns anos e sempre se encontravam, com mais três amigos também, para uma rodada de cerveja e petiscos. Aos poucos cada um foi se retirando permanecendo apenas os dois e Diana. Diana era amiga de Lívia e quase não participava da reunião deles. Especialmente neste dia havia bebido muito e certamente precisaria de ajuda para voltar para casa. A incumbência ficou por conta de Lívia, que se sentia responsável por Diana ser mais nova e frágil quando bebia álcool. Nada exagerado, porém Lívia se sentia culpada por induzir a amiga a beber de vez em quando.

      Lívia, com as bochechas rosadas e os cabelos um pouco grudados na cabeça devido ao calor de verão, deu um beijo no rosto de Lucas para se despedir, como sempre fazia. Lucas não era de beber demasiado. Era o responsável da turma e sempre levava todos para suas casas. Nesse dia não levaria ninguém, como havia combinado antes de se sentar à mesa. Tinha um compromisso mais à noite e não mudaria sua rota desde então. Lívia, ainda encostada no rosto no de Lucas, demorou um pouco para concluir o beijo. Na verdade quem demorou foi Lucas. Se afastaram e se olharam... Olhar profundo como jamais haviam se olhado antes. Não era aquele olhar carinhoso ou cuidadoso, era diferente... Lívia suspirou, continuou firme pesquisando o fundo dos olhos de Lucas. Mexia os olhos descontroladamente, observando as sobrancelhas, o nariz, a testa, os lábios... Cada detalhe daquele rosto tão conhecido. No instinto, ela entreabriu a boca, como se esperasse um beijo, e Lucas, hipnotizado, retribuiu o olhar e segurou o rosto de Lívia, abaixo da orelha e acariciou a bochecha com o polegar. Estavam muito próximos um do outro... Ele fixou seu olhar nos lábios dela e se aproximou. Lívia fechou os olhos e se entregou, mas antes de tocar seus lábios nos de Lucas abaixou a cabeça, segurou nas mãos dele, pediu desculpas e se afastou. Olhou para Diana, que estava com os olhos arregalados, queixo caído e não sabendo o que fazer. Lívia sorriu, pegou na mão da amiga chamando-a para irem embora. Moravam há poucas quadras do bar em que estavam, portanto iriam à pé. O sol aos poucos anunciava o início da noite, proporcionando uma cena belíssima estampada num alaranjado escuro com pitadas de vermelho e marrom a sua volta. Lívia suspirou, caminhou olhando para o chão e sem falar uma palavra. Lucas ficou observando as duas se afastarem, apoiando os cotovelos na mesa.

      Lívia nunca havia percebido, mas Lucas, quando tinha a oportunidade de estar no mesmo ambiente que ela, não desgrudava em nenhum momento. Quando chegava e não havia cadeira vazia perto dela, fazia com os demais se afastassem até se acomodar ao seu lado. Lívia se divertia dizendo que ele era seu protetor, que quando estava com ele estava com Deus. e ele olhava para Lívia com aquele olhar profundo e enigmático, mesmo tentando mostrar a ela o que cabia dentro daqueles olhos além da doce amizade de anos.

       Lívia, no caminho para casa e sem prestar atenção no que Diana estava lhe falando, suspirava e sentia o coração pulsar rápido. Medo e vergonha era o sentimento que tomava conta dela, uma paixão momentânea por um amigo querido. Jamais imaginou se relacionar com Lucas de um modo que não fosse somente amizade.

      Lívia, percebendo que os olhares de Lucas ultimamente não eram mais inocentes como antes, suspirou e mordeu o lábio inferior. Não sabia o que pensar e nem o que dizer a ele num próximo encontro. Abaixou a cabeça, cochichou sem deixar Diana ouvir, como se quisesse falar para si mesma, que tudo isso era besteira, que estavam sob o efeito do álcool e que tudo continuaria como antes. Respirou aliviada, chegou na sua casa, se despediu de Diana e entrou feliz. Diana seguiu mais uma quadra, onde morava com seus pais.

      Cantarolando e se distraindo com suas coisas, Lucas não saía da mente de Lívia. De repente se via pensando nele, suspirando, boca seca e coração acelerado. Depois se levantava, disfarçava a petulância por ter tido pensamentos quase pervertidos e continuava sua rotina de distrações.

      Os dias se passaram, Lívia estava tranquila quando aos suspiros por Lucas, até se encontrarem ocasionalmente na rua de sua casa. O acaso era o que ela pensava, mas Lucas foi procurá-la. De longe viu o amigo caminhando com as mãos nos bolsos, vez ou outra ajeitando a franja lisa que tapava parte de seus olhos e estampando um largo sorriso ao avistá-la. Lívia, desconcertada, tentou não ter uma síncope com o coração querendo saltar para fora do peito. Sorriu acanhada e caminhou olhando mais para o chão, por vergonha de olhar novamente aqueles olhos cor-de-mel que soltaram faíscas na última vez em que foram olhados. A uma quadra de distância, Lucas parou, cruzou os braços e ficou esperando Lívia se aproximar. Ela, percebendo o longo caminho a percorrer até ele, suspirou, sentiu a boca seca e continuou. Não conseguia disfarçar o largo sorriso e as bochechas já coradas, por causa da timidez. Chegou à frente de Lucas, olhou de novo o fundo daqueles olhos, entreabriu a boca, como se esperasse mais um vez um beijo. Lucas, continuando do ponto onde parou dias atrás, no último encontro, pegou o rosto de Lívia, tocando em seu pescoço e acariciou a bochecha com o polegar. Fixou os olhos nos lábios dela e beijou-a ternamente. Lívia se entregou sem  remorso... Se abraçaram e ficaram parados no tempo, de olhos fechados, sentindo o coração pulsar...

      — Minha ceguinha... Até que enfim percebeu, né? — ele sussurrou no ouvido de Lívia...


❤❤❤


Um Feliz Natal a todos, um Ano Novo repleto de esperanças e realizações. Fiquem com Deus e até!

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Perfume Adocicado


      Contados exatos dois meses, Ariela finalmente alcançou a coragem em entrar no quarto que era de sua mãe, Dona Hortência, que nos últimos meses, por falta de opção, viveu seus últimos dias no asilo São Tomé de Deus. Eram somente mãe e filha morando numa cidade pacata. Todos os parentes estavam muito longe, na cidade grande. Ariela, por ser concursada em Pedagogia, escolheu a tranquilidade de ter ar puro e silêncio para viver com sua mãe. Mas nem tudo saiu como o esperado. Dona Hortência não podia mais viver sem acompanhamento constante, obrigando assim Ariela a deixá-la sob os cuidados de pessoas estranhas no único asilo daquela cidade.

      Ariela visitava a mãe todos os fins de semana, e vez ou outra levava-a para sua casa, para rever seus pertences e matar a saudade de uma comida caseira e especial. Eram como irmãs e Ariela sofria por ter que deixar Dona Hortência com estranhos. A mãe dizia que era feliz no novo lar e que a filha não precisava se preocupar com nada. Às tardes jogava bingo e tomava chá com amigos. Riam e dançavam, depois se recolhiam aos quartos coletivos. Era tudo limpo, mas na verdade Dona Hortência não era mulher de ficar reclamando. Sentia solidão, muita solidão todos os dias. Não queria ter seus objetos por perto por medo de ser roubada. Não confiava nas pessoas tanto assim.

      Naquele quarto vazio Ariela sentiu o cheiro de mofo, de roupa guardada há anos, de pó nos móveis que a fez espirrar seguidamente. Por fim amarrou um lenço tapando as narinas para, enfim, retirar as roupas e doar a quem precisasse. Isso era uma ordem de Dona Hortência para quando ela morresse.

      Ariela não sentiu vontade de chorar, mesmo quando apertava algum vestido de sua mãe em seu peito. Ela pensou que sofreria mais, mas estava tranquila e até conformada com a ausência da mãe. Tinha saudades, e teria para sempre, mas não doía tanto quanto imaginava. Por momentos pensou ser fria como uma pedra de gelo, mas talvez pela vida solitária em que sua mãe passou os últimos momentos, sabia que agora Dona Hortência poderia estar num bom lugar, junto com os seus já falecidos.

      Certamente doaria tudo para o asilo de sua mãe, era assim que o chamava.. Ariela pegou roupas, sapatos, perfumes, talcos, maquiagens, esmaltes, bijuterias, tudo que sua mãe usava. Antes, claro, teve o cuidado de deixar tudo limpo e perfumado. Chegando lá, a primeira cena que viu foi uma senhorinha encostada no portão. Cumprimentou-a e perguntou se ela estava esperando alguém. Ela respondeu que sim, que seu filho logo chegaria. Ela usava batom cor-de-rosa e um perfume adocicado e enjoativo. Ariela sorriu, fechou os olhos e foi como se sentisse sua mãe por perto, devido ao perfume doce. Parecia ser o mesmo que estava na mala, o mesmo que sua mãe usava. "O perfume acabou de encontrar sua dona...", pensou Ariela. Ela entrou carregando com dificuldade a mala cheia com os pertences de sua mãe.

      As voluntárias que lá estavam receberam Ariela com alegria e, num abraço apertado, agradeceu pela gentileza em levar os objetos de Dona Hortência para lá.

      Ariela parou no corredor e, pela janela, ficou olhando o jardim. Não era dia de visitas e os idosos estavam sentados, cada um em um canto, olhando para o nada e sem se comunicarem uns com os outros. Ariela estranhou não encontrar aquela alegria descrita por sua mãe, dos jogos, brincadeiras, risadas e tudo o mais. Resolveu caminhar por eles e conversar um pouco com cada um.

      Um senhor que estava na cadeira de rodas, ficava o tempo todo com a boca aberta e vez ou outra, limpava a baba que escorria. Tinha os olhos lacrimejantes que pareciam olhar para o horizonte avistando a morte. Apenas esperava por ela. Não muito adiante, um outro senhor se entretinha com um livro. Ariela percebeu que ele passava as páginas rapidamente, impossível de terem sido lidas. Nesse instante uma enfermeira chegou até ela para acompanhá-la no passeio. Sem que Ariela perguntasse nada, Fabiana, a enfermeira, começou a contar sobre cada um. O senhor do livro não sabia ler, mas sempre foi tão encantado por livros que não se importava com esse detalhe; gostava de folhear as páginas e depois repetia todo o processo. Ariela pensou que poderia, de vez quando, voltar para ler para ele. Perguntou sobre o senhor da cadeira de rodas. Fabiana disse que ele tinha Alzheimer e que se lembrava apenas de sua infância, cada vez mais remota. Ninguém o visitava há anos... Depositavam o valor da mensalidade e pronto. Ariela perguntou sobre a mulher no portão. Fabiana disse que o filho morava há três quadras dali e que dificilmente ele vinha visitar a mãe. Mesmo assim ela ficava esperando por ele todos os dias e quando começava a escurecer, ela entrava, jantava e se recolhia para dormir. Balbuciava algumas palavras lamentando o filho não ter vindo naquele dia e logo dormia. No outro dia tudo se repetia.

      Ariela sentou ao lado de uma senhora que calmamente crochetava, sem saber definir o que seria. Era uma capa para bule de café, dizia ela, sorrindo para Ariela. Mostrou os detalhes e disse que todos os dias fazia a metade de um, que depois eram vendidas no bazar que faziam no asilo. Ficava feliz em poder ajudar de alguma maneira. Dona Antonieta, o nome dela, não tinha família e resolveu esperar pela hora da morte junto a pessoas. "Que triste morrer e ninguém saber", dizia ela, que imaginava seu corpo apodrecer até acabar o último resquício de carne e só depois algum vizinho sentir sua falta. Ariela pegou suas mãos e as beijou. Dona Antonieta acariciou seu rosto e disse que se sua filha estivesse viva seria assim, como ela.

      "Truco!", Ariela voltou-se para ver quem gritava quebrando aquele silêncio. Era Gumercindo e Antunes, que jogavam baralho o dia todo. Eram os únicos que se enturmavam nos dias comuns. Eram amigos de longa data e se reencontraram no asilo. Haviam feito o Tiro de Guerra na juventude e guardavam lembranças preciosas. Para Fabiana, esse reencontro foi a melhor coisa que havia acontecido no asilo nos últimos anos. Eram eles que animavam a turma nas festas. Mas o que animava mesmo os idosos eram os familiares que apareciam em dias de visita. Todos os dias poderiam ter visitas, mas se compreendia que a família precisaria trabalhar para sobreviver.

      Ariela perguntou para Fabiana se ela teria coragem de internar sua mãe num asilo. Ela apertou os lábios, abaixou os olhos e disse que se precisasse, sim, internaria. Mas sabia que dizia isso por não ter mais a mãe por perto, que havia falecido quando ela era bem pequena. Aquele amor de mãe ela não sabia como era. Talvez por isso respondeu tão rápido a pergunta.

      Ariela passou a tarde toda com os idosos e se sentiu muito bem. Poucos se lembravam de Dona Hortência.

      À noite, quando colocou a cabeça no travesseiro, orou, chorou e pediu perdão à mãe. Arrependeu por não ter criado uma outra alternativa para manter Dona Hortência por perto até seu último dia. Mentalmente começou a calcular quanto seria contratar uma cuidadora. Não, não seria possível com o salário de Pedagoga. Chorou durante algumas horas e depois adormeceu.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A Cristaleira



      Depois de passar o fim de semana na casa de uma irmã mais velha, em outra cidade, Nair voltou para sua casa, cansada, louca para deitar em sua cama e dormir um pouco. Depois dessa viagem, ela constatou que não tinha mais idade para tanta aventura, mesmo a cidade ficando a 3 horas de distância. Não tinha mais paciência em ficar sentada dentro de ônibus por tantas horas, com gente conversando o tempo todo, crianças gritando, chorando, comendo, enfim, Nair sabia que estava velha.

      Era a primeira vez que ela viajava sozinha depois de ficar viúva. Passados exatos dois anos, sua única filha a incentivou a respirar novos ares, a conversar com a irmã que não via há anos, a passear e distrair a cabeça com outra rotina que não fosse a sua. Por tanta insistência ela aceitou, mesmo a contragosto, só para agradar a filha. Nair era assim mesmo, não sabia falar não, mas não significava estar satisfeita com a situação. Não gostava de confusão, nem de discussão e nem de desagradar as pessoas. Era uma senhora tranquila que sofria por não se impor, acabando por fazer o que não queria. Nair sofria e chorava, escondida em seu canto, sua casa, seu quarto, sua cama e seu travesseiro que agora fazia as vezes de seu amado Odair. Que falta ele fazia em sua vida!

      Ainda não havia superado a perda dele, mesmo tendo o apoio de pessoas queridas que sempre estavam por perto para distraí-la, confortá-la e ajudar no que fosse preciso. Era a recompensa por ter sido uma mulher cuidadora. Às vezes se sentia constrangida, pois nunca soube o que seria ser cuidada. Tipo de mulher que nasceu para cuidar, e o fazia muito bem.

      Chegando em casa, Nair levou um susto! Sua louça e sua prataria não estavam no lugar de sempre, em sua cristaleira antiga e reformada. Ficou estática olhando e esperando alguma explicação da filha Roberta.

       Mãe, amanhã chega a prataria novinha e a louça moderna para enfeitar essa cristaleira. Tudo estava tão velho que eu resolvi doar para umas pessoas carentes. A senhora vai ver como vai ficar lindo!  disse, com entusiasmo, para a mãe.

      Nair só deu um sorriso acanhado, entortando a boca para um lado, abaixou a cabeça e foi para seu quarto. Desabou na cama e chorou... — "Mas que petulância da Roberta que nem sabe nada da vida e vem pegar minhas coisas e dar pra quem eu nem conheço! Não basta ela ter suas coisas e agora vem intrometer nas minhas?" — Pensava, soluçando baixinho para que Roberta não a ouvisse.

      Se levantou, foi até o maleiro do guarda-roupas e tirou uma caixa onde guardava fotos antigas. Despejou em cima da cama e achou uma de seu casamento, época que tinha o costume de colocar os presentes sobre a cama. Lá estavam sua prataria e suas louças. Chorou e apertou a foto em seu peito, fechando os olhos e se lembrando daquele momento único.

      Nair lembrou de cada detalhe, de cada peça ganhada, todas inteiras e brilhantes. A prataria ganhou de uma das madrinhas que era mais bem de vida. Nunca foi usada, por dó e por medo de estragar. Não era uma prata de boa qualidade, mas brilhava como um espelho. A louça antiga, conjunto para seis pessoas, continha pratos rasos, pratos fundos, xícaras de chá e xícaras de café, além de uma sopeira que parecia ser trabalhada à mão de tão perfeita. Era branca com desenhos delicados de rosas cor-de-rosa e um filete dourado nas bordas. Pelo tempo e pelo uso haviam alguns trincados e uns lascados nas bordas. Nair ganhou da avó e eram o seu xodó, que agora habitavam outros lares. Seriam lares ou seriam apenas casas com pessoas desorganizadas e mal-cuidadosas? Talvez já estivessem até quebradas pelo mau uso. Nair chorou de soluçar só em imaginar a cena de um prato espatifado no chão.

      Nunca perdoaria a filha por essa atitude. Mas depois de pensar muito resolveu não tocar no assunto e continuaria vivendo até seus últimos dias com esse nó na garganta.  "Que os dias sejam breves e curtos"  pensava Nair. Por pirraça, ela resolveu doar também a cristaleira para uma parente distante, que sabia ser caprichosa em sua casa e que deixava tudo bem arrumado e conservado.

      Resolvido o problema, Nair foi decaindo aos poucos, dia a dia, e sempre quando estava sozinha em seu quarto suas orações eram direcionadas ao amado Odair, para que viesse lhe tirar dessa vida e levá-la para junto dele. Não queria mais viver, não queria mais passar pela sala e ver aquele vazio onde ficava a cristaleira com sua prataria e suas louças. Como doía lembrar que Roberta lhe arrancou um sentimento! Que ousadia da filha mexer em seus objetos e decidir o que fazer! Por que não esperou que morresse? Poderia até jogar tudo fora de uma vez, mas esperasse pelo menos ser enterrada. Nair tinha pensamentos depressivos e a cada dia que passava andava com a cabeça mais baixa, passos lentos, sem se cuidar e sem se alimentar como deveria. Perdeu o encanto da vida...

      Nair, com sua paciência e bondade, nunca mais saiu de casa a passeio. Queria esperar a morte perto do pouco que lhe restava, que agora estava trancado em seu guarda-roupas, escondido. Poucas lembranças que ornavam alguns objetos carregados de valor sentimental. Valor da vida, de décadas vividas, de choros, risos, sofrimentos, alegrias, de dores, de cores, de cinza e de branco, como aquele vestido todo rendado, acinturado, com um véu de tule que lhe cobria toda a parte de trás e se arrastava pelo chão, recolhendo todo farelo e grãos de sujeira que estavam no caminho ao altar, onde viveu o momento mais feliz de sua vida. O dia decisivo para uma união duradoura, de amor, de respeito, de companheirismo, e que agora o "até que a morte os separe" se fez valer.

     

      Texto publicado em 29 de julho de 2014 - Editado

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Geraldo Pelotão

Placa fixada ao lado da Casa do Artesanato, na Praça Barão, em Franca/SP

Uma figura peculiar de minha cidade, anos 80, que de certa maneira amedrontava alguns e causava curiosidade em outros. Mas é sabido que ele era muito querido em Franca, interior de São Paulo.

Geraldo Pelotão!

O que me lembro era da molecada provocando ele, chamando-o "Ô, Pelotão!", deixando-o muito irritado, pois passavam correndo por ele. Acho que Pelotão ficava tonto com os gritos e arruaças dos pequenos.  Daí pegava pedras que encontrava pela frente, colocava-as no bolso da calça e saía atrás dos meninos, que corriam ao seu redor, zunindo como uma espada sem plano de voo. Os garotos riam, e Pelotão desnorteado ameaçava jogar pedras neles. Não me lembro de alguma pedra ser lançada, pois eu também tinha medo e logo saía de perto.

Uns diziam que o dia que Pelotão não era provocado ele nem dormia direito à noite. Lendas urbanas, que fizeram parte de minha adolescência e que muitos francanos que lerem o texto vão se lembrar com carinho desse cidadão carrancudo, mas de bom coração.


"Quem não se lembra de um homem que frequentou a Praça Barão de Franca durante décadas e, se era chamado pelo apelido, rebatia com reação violenta xingando e jogando pedras? Geraldo Gomes, mais conhecido como Geraldo Pelotão. Faleceu com 85 anos no dia 7 de maio de 2000, mas seu comportamento único fez dele um dos tipos populares mais lembrados pelos francanos. Agora, sua figura ressurge na tela do artista plástico Ismael Donizete Oliveira e ganha o maior prêmio do Salão de Abril de Belas Artes. 
De acordo com os familiares, Geraldo Pelotão teve meningite quando criança e permaneceu com a mesma idade mental da época da doença. Ele morou em Franca com uma irmã e, após o falecimento dela, recebeu os cuidados de uma vizinha."
Link retirado DAQUI

Na pacata Praça Barão daquela época, era sagrado o encontro diário com vários amigos para tomar um café no famoso Café Globo que até hoje reina por aqui. O engraxate na porta que a tudo observava, certamente se emocionaria por saber ter presenciado uma lenda tão carismática como foi Geraldo Pelotão.

Muito poderia se falar dele, mas para os que tiverem paciência e gostarem de um pouco de nostalgia, tem o vídeo abaixo, com mais de uma hora (podemos acelerar com o mouse), para matar saudades e voltar àquela época quando ninguém passava pelo centro da cidade sem ouvir os berros e os xingamentos de Geraldo Pelotão, que tentava correr, mas só dava conta de acelerar os passos tentando atarracar em algum moleque desaforado!

Confessa! Você foi um dos moleques que provocou Geraldo Pelotão, sim, francano?



segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Quem Se Importa?


Bom dia!
Voltando depois de quase um mês...

Um lado bom da internet é o avanço imediato das notícias. E um dos assuntos do momento é a agressão, o abuso, maus tratos, enfim, formas de agredir uma outra pessoa.

Isso inclui o estupro, que é crime.

Muitas pessoas, anônimas ou não, estão, finalmente, admitindo ter sofrido abuso em algum tempo da vida. Não deixo de ficar perplexa por chegar à conclusão que uma atitude dessa se tornar comum e muitas se calarem diante do fato ocorrido.

Não se trata nem me machismo, mas de uma hierarquia que não deveria existir. O não é não sem discutir. O corpo é individual e não cabe ao outro se apoderar como bem entende. Que seja um abraço, um beijo, um aperto aqui, uma passada de mão, o não é não!

O que tenho visto também são muitos que confessam o abuso e mesmo assim são acusados de culpados. Isso é um absurdo! Não importa se homem ou mulher e pior, criança, a vítima nunca é a culpada.

Li em algum lugar, um famoso dizendo que foi estuprado quando era adolescente. Horrível! Não dá pra imaginar tamanhã crueldade, mas ao invés desse famoso ter apoio, sofreu chacotas e deboches. Como se com ele fosse comum tal atitude. O ser humano é esquisito mesmo. Luta pelo feminismo e tal e quando precisa mostrar compaixão pelo próximo simplesmente agride, retrocedendo todos aqueles ideais que tanto gostam. No caso o famoso é homossexual, o que não muda nada, e os comentários foram perversos, horríveis! Diziam que ele havia gostado, que depois desse dia ele passou a ser gay, que agora ele estava querendo aparecer na mídia e toda essa babaquice de quem se esconde atrás do avatar pra despejar merda. Julgam e condenam com a maior naturalidade... Aliás, gente agressiva e mau educada é o que mais tem na internet. Mas na internet podemos filtrar e na vida, nem sempre.

A agressão moral e a ameaça são terríveis! Marcam a ferro e o trauma se instala.

Não podemos mudar essa mentalidade de um dia pra outro. Seria necessário leis severas, mas também sabemos que isso leva tempo.

No momento cabem aos pais educar seus filhos a respeitar o próximo, não só o próximo de sua convivência, mas o próximo independente de quem seja. Aquele ditado "guardem suas cabras que meu bode está solto", deveria ser abolido da mente de todos.

Pais, mães, eduquem seus machinhos a respeitar as moças (idem o contrário) a não tocar no que não lhes pertence, e a saber que o não é não! Eduquem seus filhos a não terem medo de pedir ajuda, deem abertura para um papo sem cobranças, permitam que seus filhos se abram com vocês e, principalmente, ensine a eles que o corpo é sagrado e ninguém tem o direito de tocá-lo sem permissão, que há certas coisas que não se deve fazer, enfim, ter a paciência de educar seus filhos. O que não se aprende em casa, a rua ensina da pior forma possível.

Não levem esse texto como lição de moral, sim? Longe de mim querer passar lição de moral, mas sei que aprendemos no dia a dia e sempre falta algo a acrescentar na vida daqueles que amamos tanto. Filhos estão em formação e os pais são os principais exemplos que eles têm.

Recordando como era há cinquenta anos, graças a Deus evoluímos, e quem sabe daqui cinquenta anos esse assunto já estará resolvido em sua totalidade? Tudo tem um começo...

Uma ótima semana a todos!

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Cafundó Não Existe Mais

Um texto belíssimo da querida amiga Eliana Teixeira.
Cafundó não existe mais, a não ser em minha lembrança.
Cafundó era um lugarzinho na ribanceira de um córrego que passava no fundo do quintal da nossa casa, hoje só escombros escondidos atrás da casa nova.
Em um dos Natais da minha infância, ganhei de presente um livro contando a história da aparição de Nossa Srª de Fátima para os três pastorinhos. 
Fiquei profundamente impressionada com o milagre, com a sorte dos eleitos e, com toda a fé que meu coraçãozinho pôde amealhar, desci a ribanceira musguenta do córrego, ao pé de um bambuzal, e cavei uma gruta, coisa de dois palmos de altura, um de fundura, e esculpi em barro o que parecia ser, para mim, a imagem de N. Srª de Fátima.
E todas as tardes eu ia para esse meu lugar secreto, meu Cafundó, nunca compartilhado com ninguém. Segredo meu e da Virgem. Às vezes ouvia ao longe minha mãe me chamando. Mas éramos tantos filhos que eu sabia que, se eu ficasse caladinha, ela logo se esqueceria de mim.
E o que eu fazia no meu Cafundó? Um único e precioso pedido: Que N. Srª de Fátima aparecesse para mim também.
Muito tempo se passou. Eu mesma tratava de justificar os porquês de sua não aparição: desrespeitei minha mãe, falei palavrão, bati na minha irmã...os pecadilhos de toda criança ao se confessar.
Mas uma noite, ah, que noite, eu sonhei! Sonhei que um lindo botão de rosa vermelho caía vagarosamente do espaço, girando, a coisa mais linda que jamais tinha visto.
Aí, de repente, apareceu o rosto de N. Senhora De Fátima sorrindo prá mim. Era o mesmo rosto da imagem que tínhamos dela em casa. Ela sorriu, não disse nada, e se foi.
Cafundó não existe mais. Parte do quintal tornou-se uma avenida, o córrego foi canalizado e eu não creio que N. Srª vá aparecer para mim novamente. Eu não tenho merecimento. Continuo crendo nela com toda a fé que consigo ter, mas tenho sérias dúvidas sobre a existência de Deus.
Então, se algum dia eu me tornar alguém importante, _ chance remotíssima, com a agravante que eu não faria o menor esforço para sê-lo _ não será possível colocar uma placa de bronze em Cafundó, para contar parte da história de quem fui.
E, se esta narrativa não for lida por ninguém, talvez, no momento da minha morte, eu teatralmente diga :- Cafundó, Rosebud de minha infância... E ninguém compreenderá; Somente a Virgem e eu.

Muitos lerão sim, Eliana, e ficará na memória pra sempre quando ouvirem esse nome: Cafundó.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Quando Chega a Maturidade?

Imagem pertence ao blog Simples e Clara
1 ano

Saudades de quando apenas me preocupava em chegar rápido em casa, ligar a TV e assistir Speed Racer.

Parece que foi ontem, mas estou em contagem regressiva. Não tenho um dia a mais, e sim um dia a menos de vida. Cinquenta e um já, dia 06 de outubro.

Não tem como não se questionar sobre a vida, as coisas, as pessoas, a saúde, o meio em que vive, as dores, as lembranças, as alegrias...

No pacote todo só tenho a agradecer. Apesar de todas as dores, sofrimentos e perdas, estou viva e muito bem, obrigada! Quando olhamos para trás e enxergamos superações, batalhas acabadas, pesos descarregados, sonhos realizados, ou não, o melhor que podemos fazer é agradecer pela dádiva de ter saúde e poder fazer agora, com filhos adultos e muito bem também, o que se tem vontade.

É certo que muitos vão nos achar egoístas, metidos, arrogantes, assim como achavam como éramos jovens, mas a diferença é que isso é tudo uma bobagem... O que tem de mais em sermos egoístas, metidos e arrogantes? Se realmente nos consideramos ser assim, os únicos atingidos somos nós mesmos.

Hoje me dou o luxo de escolher e, principalmente, usar o não como ponto final. Como é poderoso o não na vida da gente!

E o melhor de tudo, usar o sim como a consciência tranquila, sem medo da entrega, do momento desejado, seja ele qual for.

Esta imagem pertence ao blog Simples e Clara
22 anos

Na juventude somos imortais, mas na maturidade somos saudosistas, cuidadosos e medrosos. Sim, costumamos ter medo do desconhecido. Quem nesse mundo não tem uma pontinha de receio da morte? Acho mais medonho o momento dela, e não depois que acontece. Como será a passagem dessa pra melhor? O que sentimos? Dói? O que há do outro lado?

Agora, não é ruim fazer cinquenta. Também não é bom. Eu sendo uma pessoa hiperativa, o corpo nunca acompanha meu raciocínio. Acompanha, mas poderia ser melhor. Acho que faço coisas além do que imaginava fazer quando tinha vinte e dois, como nessa foto acima. Esse foi o dia de minha formatura. Educação Física, que tanto amava. Mas não exerci. Por culpa minha que fui permitindo me podarem as asas pra não voar pra onde sempre quis. Acontece.

Hoje sei, como disse acima, o poder supremo de usar o não. Aos vinte e dois, antes dos vinte e dois, e depois dos vinte dois, eu não sabia que podia o usar o não. É tão mais fácil se calar e fazer o outro sorrir, não é? O que é a vida da gente perante a do outro que tanto amamos? Enfim, depois dos quarenta tive essa resposta. Sim, a minha vida é tão importante quanto a do outro que amamos. Não posso me privar de nada e nem me calar quando algo me perturba ou me faz sofrer, pois isso é prejudicial a mim. Por consequência não serei feliz o suficiente para transmitir essa felicidade a quem está ao meu lado.

O tempo passa, a maturidade vem... Quando chega a maturidade?

Posso voltar a sonhar em lecionar Educação Física? Sim, claro, mas hoje existem outros sonhos, outros planos, outras conquistas, outros valores, outros desejos... Sim, podemos fazer o que quisermos, sempre, a qualquer hora, desde que não interfira na vida do outro. Podemos sim mudar de ideia e começar tudo de novo.

Acho que a maturidade é isso. Viver a vida com leveza, bom humor, rir de si, ter alegrias, satisfações, e saber enfrentar problemas com a mesma garra dos vinte e dois, agora com sabedoria. Sabedoria não só dos livros, mas da vida, repeitar o outro em sua essência. Saber deixar partir e querer que fique por livre e espontânea vontade.

Eu gostaria de voltar aos meus vinte e dois anos, mas com a imaturidade dos vinte e dois. Imagina uma jovem com cabeça saudosista e sabendo de muita coisa que só os maduros sabem? Insuportável! Cada idade tem seu encanto e esse é o segredo da vida, cada fase a seu tempo, cada tempo sua história, cada história um aprendizado...

É isso.

Parabéns pra mim!
Imagem pertence ao blog Simples e Clara
50 anos
Muito obrigada a você leitor, comentarista ou não, que sempre está por aqui! É sempre bem-vindo!

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Cabeluda



      Na pequena cidade do interior de Minas, Helena caminhava sob o sol escaldante do meio-dia. As bochechas rosadas e a franja grudada na testa pelo suor causavam desconforto à adolescente faminta. Pelo caminho, nenhuma sombra para aliviar o calor, o mau humor era visível em seu rosto, e esperar carros passar para poder atravessar a rua era irritante, sem falar na mochila pesada que ficava dependurada nas costas. Todos os dias era isso, ir e voltar do colégio. Vida de estudante.

      Assim que dobrou a última esquina um zum zum zum em frente a sua casa fez com que Helena esquecesse o calor. Sua tia, que era sua vizinha, espalhafatosa gritava no meio da rua para quem quisesse ouvir. Sem entender nada, Helena só ouvia "aquela cabeluda... a cabeluda... vou acabar com aquela cabeluda...". Apressou os passos e ao entrar em sua casa se deparou com sua mãe atrás do portão, à espreita, ouvindo a cunhada aos berros. Já havia acontecido algumas vezes dessa cunhada causar estardalhaço na rua chamando a atenção de todo mundo.

      Helena, com os olhos arregalados e também acostumada com a situação, perguntou quem era a cabeluda. Sua mãe, com o dedo indicador em riste sobre a boca, puxou-a pelo braço e disse para não perguntar nada. Aflita, Helena obedeceu e entrou pela cozinha, onde um aroma de carne de panela a fez esquecer da tia maluca que gritava na rua.

      Depois de um tempo a mãe de Helena desistiu de ouvir o espetáculo e também se recolheu aos seus afazeres. Helena já rapava o prato e tinha um último pedaço de carne espetado no garfo, pronto a ser devorado, perguntou calmamente o que havia acontecido e finalmente quem era a cabeluda.

      No intervalo entre chegar em casa e devorar um pratão de comida, várias histórias se formaram em sua mente curiosa. Cabeluda seria, em sua imaginação, uma mulher com cabelos longos, despontados, escuros e que arrastavam ao chão e que não deixavam aparecer seu rosto. Talvez um fantasma que perambulava durante o dia, ou talvez uma assassina querendo acabar com a vida da tia, ou então um ser de outro planeta que era coberto por pelos.

      Sua mãe, com jeito e procurando as palavras que Helena poderia entender, disse que a tal cabeluda era uma mulher da vida que ficava dando em cima de seu tio, casado com a tia que gostava de um barraco para se fazer de vítima e chamar a atenção de todos.

      Helena, ainda sem ter uma nítida definição da cabeluda, pensou numa mulher que carregava correntes ou até algemas nas mãos, que capturava homens casados para domina-los e tirá-los de sua família. Ainda mastigando o último pedaço de carne, perguntou como era a cabeluda. Sua mãe disse que não sabia ao certo, pois havia visto a moça somente de costas e sabia apenas que tinha os cabelos longos, ondulados, brilhantes e negros. Quis saber o nome dela, mas essa informação sua mãe não tinha. Perguntou sobre seu tio e o que ele dizia disso tudo. A mãe apenas respondeu que ele não pronunciava palavra nenhuma. Que ficava mudo-calado e também muito abatido com essa situação. Inconformada, Helena continuou pensando em como a cabeluda foi encafifar justamente com seu tio, um homem feio que usava sempre uma calça dois números maiores que seu corpo, uma camisa que ficava com os dois últimos botões abertos devido ao tamanho exagerado da barriga e que quando ria podia ver a falha dos dentes de trás do lado esquerdo. Perguntou para sua mãe como sua tia conheceu essa moça. Olhando de lado, sua mãe preferiu terminar o assunto para evitar prováveis fofocas saindo de sua porta. "Deixa que eles resolvam o assunto, filha, vamos cuidar de nossa vida.", respondeu. "Ah, mas eu bem vi a senhora fuxicando atrás do portão, né?", disse rindo e já colocando o prato dentro da pia. Sua mãe riu e saiu de perto de Helena. Na verdade ela foi até o quarto rir mais sossegada, escondida da filha que, não demoraria, entenderia essas coisas de mulher atrás de homem casado.

      E assim Helena continuou a fantasiar sobre a tal cabeluda, e sua mãe, sempre desconversando sobre o assunto, esperava o momento certo da filha saber coisas de gente adulta. "Tudo tem seu tempo", pensava, suspirando e ajeitando as roupas passadas que estavam esperando ser colocadas no cabide. Roupas do marido, claro.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Maria do Socorro


      Passava da meia-noite quando Maria do Socorro foi tomar seu banho, tranquila. Queria lavar os cabelos, mas o cansaço era tanto que não teve paciência  para caprichar como deveria. Um punhado de shampoo, enxague, uma batida com o bico do condicionador na palma da mão para aproveitar até a última gota, uma massagem nas pontas, enxague e já estava bom. Entre um bocejo e uma esfregada da toalha pelo corpo, ela mais parecia um zumbi à procura de um lugar para deitar o corpo e dormir. Os cabelos ficariam molhados e já estariam condenados a se ajeitarem num coque na manhã seguinte. Mas antes de fechar os olhos uma última olhada nos dois filhos que dormiam no quarto ao lado. A paz tão procurada durante o dia se fazia presente neste exato momento quando olhava os filhos dormirem.

      Mateus, de três anos, e Adriana, a mocinha babá e companheira de Maria do Socorro. Uma preciosidade, um orgulho, um encanto gerado num momento de muito amor. O amor se foi, mas os frutos se fortificaram e enchiam o coração de Maria de orgulho.

      Deitou-se, fechou os olhos e logo o despertador gritava em seus ouvidos. Era essa a sensação que tinha, mesmo já tendo passado cinco horas de sono. Noite curta demais para caber tanto cansaço. Era um cansaço do corpo que tinha que suportar diariamente. Levantou-se e foi logo colocando as mãos nos cabelos cacheados, ajeitando-os antes do susto de se ver refletida no espelho. As olheiras estavam profundas, as bochechas cada vez mais caídas, parecendo um bulldog, rugas na testa quando franzida, pés de galinha que mais pareciam pés de peru, ou de perua, como gostava de falar, rindo de sua aparência. Olhando cada detalhe no rosto e tentando achar mais alguma prova de que o frescor da juventude estava cada vez mais longe, sorriu. Lavou o rosto, escovou os dentes demoradamente e começou a ajeitar os cachos rebeldes num coque no alto da cabeça. Puxou uns fios sobre cada orelha, enrolou-os no dedo tentando fazer um cacho fino e sorriu novamente. Lembrou-se de seu pai que sempre apertava seu coque que, desde a adolescência tinha o costume usá-lo, chamando-o de troço. Maria ficava brava e saía pisando forte enquanto seu pai gargalhava. Não gostava de ter seu cabelo comparado ao estrume de vaca. Chegava a cheirá-los para saber se estavam com fedor. Sorriu, passou um creme hidratante, pó para tapar pequenas imperfeições, lápis nos olhos e batom nude.

      A roupa já estava estirada numa poltrona vermelha, velha, e com o tecido desfiado no encosto, que era disfarçado com uma toalha de crochê, antiga, feita por sua avó. Não combinava, mas era melhor do que sair carregando a espuma que grudava em sua roupa quando se sentava nela. Vestiu-se e foi para a cozinha preparar o café. Apenas um café preto seria o necessário para aguentar até o meio da manhã, onde tinha tempo para se alimentar com calma um pequeno lanche oferecido pela empresa onde trabalhava. Entre uma golada e outra de café, ferveu o feite, fatiou o bolo de fubá e cobriu tudo com um pano de prato branquíssimo, pelas longas horas que ficava de molho em água sanitária, sem ornamento nenhum.

      Olhou no relógio e os ponteiros não colaboravam. Tinha que se apressar ou perderia a condução. Foi até o quarto das crianças, deu um beijo em cada uma e acordou a filha dizendo que já estava indo. Assim que o Sol reinasse absoluto no céu, Camila, a filha companheira se levantaria, aprontaria o irmão e o levaria até a creche. A mochila já estava pronta desde a noite anterior e seu uniforme estava passado e pendurado num cabide e apoiado no puxador do roupeiro. Depois seguiria para seu colégio, que ficava a algumas quadras de sua casa. Maria agradecia por ter escolas perto de sua casa. Se dizia com sorte, apesar da situação em que viviam.

      Assim que colocava os pés para fora de casa, Maria do Socorro fazia o nome do pai, abaixava a cabeça e conversava com Deus para que nada de ruim acontecesse com seus filhos. A lembrança de Bartô, seu marido, era inevitável e com isso não segurava as lágrimas que desciam rasgando seu rosto fazendo um caminho como se fosse uma estrada de chão, devido ao pó compacto. Um caminho duro e seco, assim como se tornou sua vida. Sentia falta do marido, de seus carinhos e principalmente de sua proteção. Deixou a família antes da hora, muito antes de Maria repetir incansáveis vezes o quanto o amava. Se lembrou da última frase que Bartô disse a ela, segundos antes da bala entrar pela janela e acertar em cheio seus miolos: "Tô com vontade de comer picanha, minha preta..." e caiu sobre a cama encharcando os lençóis de sangue ensanguentado. O cheiro quente e forte do sangue contrastava com a brisa que entrava pela mesma janela onde abrigou a bala assassina. A princípio Maria ficou paralisada...

      Até hoje Maria imagina Bartô entrando pela porta, sem fazer barulho, assustando-a e logo em seguida envolvendo-a nos seus braços.

      Maria do Socorro voltaria para casa só à noite, onde a rotina já estava programada: primeiro o filho, com abraços, beijos, carinhos, brincadeiras, conversas, e depois um tempo especial reservado para Camila, com ouvidos atentos a tudo que ela falaria. Uma rápida arrumação na casa, faria o jantar que também seria o almoço dos filhos, um bolo ou um pão caseiro, sovado pelos seus braços fortes e musculosos.

      E assim continuaria a vida, trabalhando, cuidando, amando os filhos e vivendo seu luto, que duraria por muitos anos, ela sabia muito bem disso.

      Texto publicado em 2014 - Editado


terça-feira, 23 de agosto de 2016

O Reflexo


      — Nossa, como tô horrível! Olha esse roxo aqui! — disse em voz baixa — Preciso parar com isso... Nunca gostei e cada dia piora mais...

      Paloma, logo em seguida, entrou debaixo do chuveiro e chorou. Sua pele branca denunciava um aperto mais forte, uma mordida inesperada, um tapa estalado na bunda... Nunca gostou de violência. Na verdade acreditava ser trauma, mas acabava cedendo aos caprichos de Eli. Amava-o tanto que se entregava aos seus apelos. Sexo selvagem. Ainda debaixo do chuveiro e com a água se misturando ao choro silencioso, pensava que já havia passado da hora de colocar um ponto final na relação conturbada. Já sofria por antecipação e não suportava mais se olhar no espelho e ver manchas roxas pelo corpo. Não entendia como não sentia dores durante a relação, pois sempre foi muito sensível ao toque, meiga e comportada, com vários planos em mente, incluindo um roteiro matrimonial de acordo com os bons costumes. Pecou em não se manter virgem, mas sabia que não conseguiria se unir a um homem que nunca tivesse tocado seu corpo.


      Disfarçou as partes escuras com maquiagem, caprichou em esconder as olheiras, vestiu o uniforme e seguiu para o trabalho. Vendedora de loja de departamentos, trabalho duro, ficava em pé o tempo todo. Uma das regras do estabelecimento era ser apresentável e manter o bom humor. Ela tirava de letra e faturava um gordo salário, motivo pelo qual optou por morar sozinha.


      Felizmente ninguém reparou em nada de estranho com Paloma. Muitas vezes temia que alguém pensasse que era agredida, e caso isso acontecesse, não saberia onde colocaria seus argumentos. Local onde há vários funcionários seria difícil evitar comentários maldosos. Sempre que possível se retirava para se olhar no espelho, retocando aqui e ali, disfarçando o arroxeado na pele.


      Retornando para casa, Eli a aguardava no saguão do prédio. Um abraço carinhoso, um beijo nos lábios, um cheiro e subiram. Paloma não estava preparada para romper, mas o trauma se fazia cada vez mais presente. Seria doloroso, mas era a atitude mais sensata a ser tomada.


      Eli deixou o apartamento nervoso, saiu cantando pneu e sumiu. Nunca mais tiveram contato.


      Paloma já não sofria tanto e aos poucos voltou com sua vida normal, trabalho, passeios com amigos e um curso de artesanato para preencher o pouco tempo ocioso. Optou pela argila. Modelar vasos de vários tamanhos, formas e cores, lambuzar as mãos e ver nascer um objeto que ornaria algum ambiente. Inicialmente presentearia os amigos, depois, quem sabe, arriscaria vendê-los. 


      Entre os alunos do curso um lhe chamava a atenção. Rodrigo. Um pouco mais baixo que ela, risonho, uma covinha no queixo, olhos amendoados e porte atlético. "Aposto que pratica artes marciais, só pode!", pensava. "Lindinho demais", concluía.


      O mesmo espanto que teve quando pensou em terminar com Eli, agora pensava em começar a se relacionar com Rodrigo. Ficou feliz em não sofrer por Eli. Nunca mais precisou esconder marcas roxas e nem olheiras, devido às noites intensas com Eli.


      Não demorou para marcarem encontro. Primeiro beijo, abraço aconchegante, carinhos intermináveis e tudo estava certo para Paloma, Rodrigo era o carinho em pessoa, tudo o que ela sempre quis.


      Primeira noite de amor... Simplesmente fechou os olhos e seguiu seus instintos. Se entregou aos seus carinhos e gostava do básico do básico; sentia conforto em seus braços, sem novidades, sem rapidez, tudo meigo e pausado. Vez ou outra pensava em Eli e em seu jeito intenso de amar. Depois olhava nos olhos amendoados de Rodrigo e sorria. Estava nos braços do homem mais carinhoso do mundo. Mas... Não conseguiu sentir prazer. Pela primeira vez fingiu. Porém ficou feliz; tudo seria uma questão de tempo, de se acostumar com o novo, cultivar o carinho e pegar para si toda a ternura que Rodrigo lhe entregava de bandeja.


      Alguns meses de namoro e já eram incontáveis as fingidas de prazer. Paloma não se sentia tão feliz e satisfeita como no começo, mesmo tendo imenso carinho e amor por Rodrigo, com todo aquele corpo perfeito e torneado, a boca macia e carinhosa, o toque aveludado de suas mãos, os suspiros longos em seu pescoço que provocavam arrepios intensos, tudo isso não era mais suficiente para estar sempre disposta ao sexo. Começava a inventar dores de cabeça e cansaço. Sentia tédio. Falta de inovar, de mudar, de inventar, falta de uma dor provocada, um tapa de leve na bunda, uma mordida no lábio inferior ou então no bico do seio, uma violenciazinha inocente, um puxão de cabeço... Por fim não tinha mais paciência com tanta calmaria sexual.


      Paloma se assustou com seus pensamentos que estavam guardados no passado. Suspirou, fechou os olhos e imaginou Eli caminhando em sua direção, tirando a camisa e abrindo o zíper da calça. O volume intenso fazia ela se arrepiar... Chegava bem a sua frente e puxava seu cabeço pela nuca. Consequentemente fechava os olhos e abria a boca esperando o beijo intenso, molhado e quente. Deitava sobre ela sem se importar com o peso de seu corpo que era bem maior que o dela, mordia o pescoço e arrastava os lábios, arranhando com os dentes, até chegar à boca...


      Paloma abriu os olhos e deu um tapa em seu rosto. Se assustou por estar completamente úmida. Eli... Só ele conhecia seu corpo e suas vontades.


      Na última noite com Rodrigo, por impulso, deu-lhe um tapa no rosto. Ele se assustou, segurou seu punho e encarou-a com estranheza. 


      — O que é isso, amor, tá maluca? Odeio violência, você sabe disso, não sabe? — delicadamente repreendeu Paloma.


      Ela, aproveitando a oportunidade, pôs fim à relação. Respirou aliviada, sem sofrimento. 


      O tempo passou, Paloma tinha Eli em seus pensamentos praticamente todos os dias, noites com insônia e falta do corpo dele sobre o seu. Mas não tinha coragem de ligar, perguntar como estava, ou então ouvir a voz dele e desligar. Será que seu número ainda fazia parte de seus contatos? Se não, poderia desligar sem problemas. Paloma nunca foi tímida, mas estava receosa em procurar Eli. Não sabia como ele reagiria.. 


      — Alô?


      — Oi...


      — Paloma! 


      — Quando você me chama pelo nome boa coisa não é... Tudo bem?


      — Olha, estou um pouco ocupado, depois a gente se fala, pode ser?


      — Claro!


      O chão se abriu sob os pés de Paloma. Um longo suspiro e uma lágrima já descia pelo seu rosto. Sentiu vergonha e arrependimento. Não deveria ter ligado. Sabia onde ele trabalhava, deveria ter provocado um encontro por acaso por lá, na rua. Agora era tarde e já estava feito. Procurar por homem, pelo ex, nunca foi boa ideia para ninguém.


      Voltou a sua rotina, sem procurar pensar em homem nenhum.


      — Alô, amor...


      — Eli... amor...


      — Estou aqui em baixo, abre a porta pra mim que quero subir, agora!


      Trêmula, Paloma andou de um lado a outro, procurando algo decente para vestir, se olhou no espelho ajeitando os cabelos, enfim, tudo seria inútil naquele momento, pois ficaria nua, fecharia os olhos e se entregaria a Eli, como sempre fez.


      E esse foi o dia batizado por ela por "O dia roxo", onde assumiu seu prazer em sentir dor, em provocar também, em não se importar com marcas pelo corpo, nem precisar se desculpar caso alguém a questionasse, enfim, o recomeço mais colorido de sua vida.



segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Cara


Dispensa apresentação: Sílvio Santos, o cara!


"Só não consegue o objetivo quem sonha demasiado, só não consegue o objetivo quem dá o passo maior que a perna, quem acredita que as coisas são fáceis. Todas as coisas são difíceis, todas as coisas têm que ser lutadas."

"Como camelô, eu já era um empresário. Mantinha três funcionários. Um ficava olhando quando vinha o rapa. O outro cuidava do estoque de canetas e o terceiro funcionava como farol. Ele chegava de 15 em 15 minutos e dizia: "Gostei da caneta, me dá uma", chamando a atenção dos clientes."

"Não se importe com o que sua esposa fala, o que seus filhos falam, seus amigos falam, se importe com aquilo que você vive no dia a dia. Pelo menos foi assim que eu consegui ir de camelô a banqueiro."

"Eu luto pela sobrevivência de meu grupo, e não para minha vaidade, para minha grandiosidade, para o meu poder."

"Eu não jogo dinheiro fora. As passagens de primeira classe são muito caras. Por que vou andar na primeira classe se ela é igual à executiva? Só andaria nessa categoria caso pudesse sair do avião por algum compartimento especial e me salvar se houvesse alguma pane."

"Não me arrependo de nada. Eu posso dizer que não levei a vida, a vida que me levou. Eu nunca fiz planos. Até virei candidato à Presidência da República (em 1989) sem premeditar. Adoro trabalhar."

"O filme de hoje na sessão das dez é muito bom... Eu não assisti, mas o filme é muito bom!".

"Muitas coisas na vida são mais importantes que o dinheiro, mas custam caro."

"Nunca dormi com mulher feia, mas já acordei com várias."

"Agora, com este microfone, me chamam na internet de Sílvio Madonna. Este é muito melhor do que o outro. Aquele da cruz parecia que eu estava caminhando para o cemitério."


domingo, 7 de agosto de 2016

O Lado Ruim da Coisa


O que eu nunca vou me acostumar é com agressões, violência e xingamentos. Me afasto ao menor sinal dessas atitudes.

Mas, quando estamos ligados em redes sociais, que gostamos, que temos amigos valorosos e queridos, é impossível simplesmente deletar essa ou aquela. Apesar das possíveis agressões e deboches, pessoas têm o lado bom e o lado ruim. Às vezes o ruim predomina.

Depois de todo esse escândalo político, todos ficaram ativos e militantes. Lutam pela democracia, pedem respeito às opiniões, mas agridem de graça quem pensa ao contrário. Fincam o pé de que estão certos e não aceitam nada diferente disso.

Uma opinião, uma palavra diferente se torna atravessada na mente de alguns.

E reclamam, zombam, riem, xingam, esculacham, denigrem...

Melhor é se afastar. Gente que nem conhecemos e que tanto peso tem em nossas escolhas, caso permitamos isso.

Não deveria ser assim. Como sempre disse Pe Fábio, "Não precisamos pegar o lixo que jogam em nossas costas. Ignore! Nós sabemos quem somos e o outro só nos imagina."

É um exercício diário não nos deixar contaminar pela arrogância de alguns, pelas palavras maldosas que lemos, afinal são só palavras... Que ferem...

Não importa quem ou o que se defenda. Cada um tem sua opinião e sua verdade.

O que antes ficava só em rodinhas de amigos, hoje se espalha com facilidade.

Não só sobre política, mas em todos os setores. Se está conectado em alguma rede, está exposto a críticas.

Na verdade tenho sentido uma preguiça imensa em socializar virtualmente. Leio o que me interessa e me mantenho invisível.

"Quem se cala consente com o que está acontecendo". Mentira! Mais um julgamento leviano. Você, por acaso, me conhece? E nem eu te conheço.

A quem interessa sua opinião e sua agressão? A quem interessa seu conhecimento? Você acredita mesmo que xingando e se fazendo militante vai conseguir mudar a opinião alheia? Lhe dou a liberdade de falar o que que quiser, mas saiba que não me influencia em nada!

Uma ótima semana a todos!

segunda-feira, 25 de julho de 2016

O Triste Fim de Donana


      Uma última colherada de sopa na boca de Seu Romero, uma limpada no canto da boca com um guardanapo de papel e pronto, o moribundo já estava alimentado e pronto para dormir o sono dos justos.

      Donana ficava resmungando o tempo todo, dizendo frases feitas, como se quisesse gravá-las na memória para repeti-las no dia seguinte, vírgula por vírgula. Outras vezes parecia conversar com alguém invisível, perguntando e respondendo logo em seguida, outras parecia Deus a lhe ouvir, atencioso, e era nesse momento que as lamentações se aguçavam. Parecia questioná-Lo por tanto sofrimento e um fim de vida tão sofrido, tendo que carregar nas costas o marido puteiro. Mesmo assim cuidava de Seu Romero com um carinho embutido.

      Depois de cobri-lo, apagar as luzes e deixar a porta entreaberta, Donana se dirigia à cozinha para seus últimos afazeres. Ainda resmungando, balançava a cabeça de um lado para o outro, como se lembrasse de fatos não muito distantes e que a fizeram sofrer demasiado. Apoiava as mãos na pia, abaixava a cabeça e simulava um choro. Não saíam lágrimas, mas a ladainha constante e o zunido balbuciado, denunciavam que ainda havia amor e que ela sabia que sua missão, até os últimos dias, seria de cuidar do marido.

      Seu Romero mal se equilibrava em pé. Donana colocava ele apoiado no andador e ficava por perto ajudando-o a caminhar pela varanda, para pegar o ar da manhã e o sol bem fraquinho, tomando cuidado para não queimar-lhe a careca reluzente.

      Ele olhava-a com piedade e gratidão, mas não pronunciava sequer um "obrigado". Tinha vergonha de estar como estava e do trabalho que estava dando a Donana. Era a mulher escolhida, a rainha de seu lar, a mãe de seus filhos, a avó mais carinhosa do mundo e dotada de um coração imenso, incapaz de calcular quantas pessoas cabiam dentro dele. Era agradecido, mas preferia o silêncio a se sentir humilhado reconhecendo a preciosidade que o acompanhou durante uma vida inteira.

      Sabia que seu fim estava próximo, e o máximo que lhe permitia fazer era ficar em silêncio. Donana lhe perguntava coisas, se estava com fome, com frio, cansado, com sede ou se queria assistir à TV. Ele respondia meneando a cabeça e mais nada. Não conseguia mais encarar Donana. Era mulher demais para ele que se sentia tão inútil nesse fim da vida.

      Donana reclamava muito, lamentava, mas no fundo se sentia orgulhosa por ter que cuidar do marido até os últimos momentos. Era puteiro, cafajeste e não escondia de ninguém suas puladas de cerca. Se vangloriava de ser um conquistador nato, um colecionador de corpos estranhos, um Don Juan perdido nesse mundo de meu Deus.

      Mais um dia de cuidados, menos um dia para Seu Romero. Mais um dia de lamentações e menos um dia para lembrar das travessuras vividas fora do casamento. Donana dormia em paz, Seu Romero custava a pegar no sono e chorava em silêncio. Seu fim estava próximo, poderia ser hoje ou semana que vem. As carnes de seu corpo já anunciavam falta de mobilidade e falência. Desejava morrer dormindo. Só não se esquecia de beber bastante água antes de fechar os olhos. Para ele deveria ser muito triste morrer de sede. Morrer de fome não teria problemas, mas morrer de sede seria o inferno.

      O dia clareou, Donana no fogão preparando o café da manhã, mas antes disso uma olhada em seu marido, que dormia feito uma criança, com respiração profunda e olhos entreabertos mexendo as pupilas de um lado e de outro. Corpo deitado de lado, encurvado e com a mão debaixo do travesseiro. Como um anjo esperando sua hora de partir.

      Donana respirou fundo e seguiu a lida, até quando Deus quisesse.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A Vulnerabilidade De Quem Ama


Ainda recebo e-mails de mulheres que sofrem por amor, que mantém uma relação doentia, que não sabem como agir, que aguentam maus tratos em nome do amor, e outras até com pedido de socorro, pois se sentem tão inúteis que não conseguem pensar num modo de sair de um relacionamento doentio. E o pior, há ainda quem acredite que o(a) parceiro(a) mudará, caso ele(a) ajude com um tratamento médico.

Triste constatação. Este texto Amor Psicopata ainda é o mais lido e todos os dias é acessado.

Depois da notícia de Bianca Toledo (não colocarei link aqui) sobre seu relacionamento com um psicopata, talvez muitas outras mulheres a tomem como exemplo e se sintam fortalecidas a colocar um ponto final num relacionamento doentio.

O amor tem esse deslize de nos fazer vulneráveis a aceitar o que se torna doentio e até fatal.

O sonho, a construção de um castelo imaginário com um príncipe dentro dele ainda é muito poderoso pra algumas mulheres. 

Quem não ficaria feliz e completamente apaixonada por conhecer um homem cativante, sedutor e que transmita toda a segurança que se quer? Ainda não sei qual é a essa segurança e proteção que muitas buscam, mas cada uma tem suas fraquezas.

O medo de perder, desapegar, deixar ir, livrar-se do que lhe faz mal ainda é um grande empecilho. E não são só homens não, existem mulheres psicopatas também. Invertem a situação e convencem com tanta categoria que dificilmente são desmascarados no primeiro instante.

A grande característica de quem tem esse desvio de caráter é a total falta de sentimentos e a grande capacidade de manipulação. Terrível!

Mas há também o obsessor, o possuidor, o dono da situação, aquele que guarda sua presa a sete chaves. E a mulher permanece no cativeiro, com o sonho que um dia tudo mude e que o príncipe que virou sapo volte a ser príncipe. Sonham com o amor eterno, cuidador, protetor e a hipótese de abandonar tudo isso seria como a morte solitária, onde nunca mais o coração aceleraria por uma outra pessoa e os olhos não mais brilhariam. Aquele amor que começaria do nada e não terminaria nunca mais. 

Não é culpa de quem ama não perceber que o outro é possessivo, obsessivo, psicopata. Quem agride é que está fora da normalidade. Não é trouxa quem acredita, confia, abre mão de algumas coisas em nome da união; trouxa é quem não valoriza o companheirismo. Não é o mais esperto quem tem a capacidade de manipulação. O mais esperto é aquele que sabe que existem pessoas tão espertas quanto ele e que um dia a máscara cai. Portanto, se há algo errado, se houve mudanças, se há sofrimento, cárcere, agressão moral ou física, ah, isso não é amor.

Não são só os sonhadores que caem na lábia dos doentios. Os que amam podem ser presas fáceis. Qualquer pessoa pode se tornar vulnerável nas mãos de um psicopata. A diferença é a hora de dizer não e romper essa corrente de manipulação.

Não tenha medo de mudanças, não tenha receio de ficar só, não creia que nunca mais será amado, não aceite menos do que mereça... O que você merece?

O ser humano é carregado de emoções e o amor vem e vai várias vezes durante a vida. E talvez o amor eterno seja aquele não vivido, não correspondido, carimbado do "se", eternamente "e se...".

E, graças a Deus, a maioria ama e é amado!


sábado, 18 de junho de 2016

Letra de Livro


      Anos 70...      

      O cachorro latia insistentemente fazendo com que Dona Aurora se irritasse e o mandasse ir deitar. Figo chorava, abanava o rabo fazendo com que seu corpo envergasse lateralmente. Dona Aurora olhou pelo vitrô da cozinha e entendeu o motivo: Véio chegando com um embrulho nas mãos. Não era um embrulho, mas uma maleta verde que ela não tinha ideia do que seria.

      Véio, como era carinhosamente chamado por todos, devido a precocidade de seus cabelos brancos, desde os dezesseis anos, assoviava subindo o degrau que separava a calçada do portão de ferro, enferrujado pelo tempo, que garantia a segurança e privacidade de sua casa. Ao abri-lo, um ranger incomodava quem estava por perto. Garantia que afugentava os homens de pouco caráter, pensava ele todas as vezes em que entrava ou saía de casa. Já estavam acostumados com o ranger, mas os vizinhos ainda ficavam incomodados. Quem passava em frente a sua casa não entendia o mistério do portão denunciador, pois o restante do muro era baixo, sendo de fácil acesso a quem tivesse destreza suficiente para pulá-lo. Mas, além do portão, havia Figo, seu leal companheiro, aos doze anos com cara e jovialidade de um adolescente. Seu pelo, quando exposto ao sol, ficava esverdeado, bonito, brilhoso, por isso o nome Figo. Figo da fruta, que faz o doce mais suculento já feito por Dona Aurora. Ficava tão verde que dava dó de comer sem lamentar estragar a perfeição da bolinha em foma de pião. Mas essa é uma outra história. Lembram do pião de madeira que os meninos enrolavam uma corda e lançavam ao chão?

      Dona Aurora, enxugando as mãos no avental surrado, ficou na porta esperando Seu Véio todo pimpão chegando com sua maleta misteriosa. 

      Todo orgulhoso destravou o fecho, abriu calmamente, riu e perguntou para sua mulher se sabia o que era aquilo. 

      — "Não, quéisso, Véio?" — perguntou curiosa.

      — "Isso é uma máquina que faz letra de livro, muié, espia só!" — sorriu, abrindo os braços mostrando a maravilha de aparelho que acabara de comprar.

      Dona Aurora não entendeu nada, apenas olhou na cara dele e voltou à lida da casa. 

      Seu Véio sentou-se, ficou admirando a bichinha, depois levantou-se e pegou um pedaço de papel, desses de enrolar pão. Tentou enfiar pelo rolo da máquina, mas não fazia ideia de como ela ficaria retinha lá dentro. Olhava de um lado, do outro, descobriu as rodelas laterais que faziam girar o rolo e deduziu que se introduzisse o papel de um lado, logicamente saía do outro lado. E fez! Ficou todo torto, mas conseguiu. Só não atinou que havia um "prendedor" para a folha ficar esticadinha, bastava puxá-lo para a frente, ajeitar o papel e depois soltá-lo. Com sacrifício, enfiou a folha sem afastar o "prendedor", com muita dificuldade, mas acabou conseguindo. Sorriu e se achou o maioral dos maiorais, pelo menos entre seus amigos era considerado o mais inteligente e culto. 

      Lembrou-se das instruções da moça da loja, em apertar as teclas com força, para que carimbassem no papel. A primeira seria A, em homenagem à Aurora, sua deusa para todos os momentos, tanto alegres quanto tristes. Não tinha muita paciência com ele, mas pelo menos não ficava criticando ou chamando sua atenção. 

      Depois veio a letra U. Depois R e assim por diante, até escrever Aurora em letra de livro, como havia prometido a moça da loja.

      — Corre aqui, veia, vem ver!

      Dona Aurora chegou por trás de Véio e leu seu nome, todo retinho, bonitinho e com letra de livro.

      — Gente, coméisso, Véio, cê endoidou, foi?

      Seu Véio ficou o resto da tarde fuçando na máquina de datilografia. Vez ou outra cantarolava uma moda de viola que saía do radinho de pilha que tinha lugar cativo sobre a geladeira. Dava uma sacudida nos ombros e depois voltava a acariciar sua preciosidade. Correu para pegar a Bíblia e copiar alguma frase. A folha não estava mais em branco e nem retinha na máquina, mas as letras de livro estavam todas em carreirinha, ornadas uma do lado da outra, algumas sem espaço entre elas e outras totalmente ilegíveis, como se Seu Véio fizesse um teste com as letras não utilizadas naquele momento. Depois os números, em ordem crescente e depois decrescente. E finalmente descobriu como escrever em letras grandes, maiúsculas e fáceis de enxergar. Soltou um grito de satisfação, levantou-se, puxou Dona Aurora pelo braço, segurou sua cintura e começou a rodopiar com ela, aproveitando a carona do forró que tocava solto na rádio.

      Dona Aurosa ria que dava gosto. Era feliz com seu veio assim, de graça, sem fazer esforço. Primeiro namorado e único homem de sua vida, Para sempre, obedecendo o sacramento matrimonial que há quarenta anos uniu esse homem descabeçado, avoado, curioso e doce. Simplesmente o amor de sua vida.

                                                                                                                                                           Fim