quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Domênica


      Pontualmente às sete horas, dona Clotilde carinhosamente acordou Domênica. Passou a mão em seu rosto fino e rosado, apertando-lhe o nariz levemente até que a pequena abrisse os olhos negros. Sorriu desejando-lhe bom dia e para que se levantasse, pois era domingo e iriam à missa.

      Domênica espreguiçou na cama, como um gato manhoso, bocejou, piscou os olhos várias vezes e com os pés jogou as cobertas para o lado e se levantou.

      Não gostava de ir à missa, mas como não tinha outra opção iria sem reclamar. O pai era muito rígido e não perguntava se queria ir ou não. Apenas intimava toda a família e pronto. Uma olhada do pai e o mundo caía. Uma franzida de testa e já sabia que tinha feito algo errado. A bronca era certeza de vir a qualquer momento. De certa forma já estava acostumada, mesmo sendo uma menina comportada e obediente.

      Nos seus sete anos de inocência, Domênica tinha o hábito de acordar cedo todos os dias. Iam à missa aos domingos e depois almoçavam na casa dos avós, que amava. Sempre tinha aquelas gostosuras caseiras como goiabada cascão com queijo mineiro, doce de abóbora com coco, pão caseiro e mexerica. Era tão detalhista que não comia mexerica sem antes retirar todos os fiapos brancos. Demorava horas, mas a satisfação em se deliciar com uma grandona apanhada do pé era indescritível. Não tinha hora para terminar com as guloseimas, mas poderia começar somente após o almoço.

      Colocava uma roupa melhor, sapatos novos e estava pronta. O pai já aguardava na calçada, ansioso pela demora de todos. Sempre com a cara amarrada, mau humorado e ranzinza, reclamava durante todo o trajeto até a igreja. Cinco quadras ouvindo reclamações e ofensas para sua mãe, que se calava e ouvia. Só um doce de pessoa como dona Clotilde para aturar um homem grotesco e fedorento como seu pai. Quase não se falavam e quando acontecia era para dar-lhe alguma bronca ou colocá-la de castigo. Mas, como toda criança sempre dá um jeito de ser feliz, Domênica evitava atormentar seu pai com sua presença ou simplesmente com o som de sua voz. Era tímida e isto ajudava-a a ficar quieta quando estava perto de seu pai.

      A igreja estava lotada, com gente em pé pelos lados e até do lado de fora, com os panfletos em punho, já aguardando o início da missa. Roberto, pai de Domênica, segurando a mão de sua mãe e a de Domênica, entrou apressado e deu um jeito de arrumar um lugar, apertando todos, bem na frente, perto do altar. Não enxergava direito e por isso queria ficar bem perto do padre. Às vezes ele ficava em pé, cedendo seu lugar para a esposa e Domênica, outras vezes colocava a pequena em seu colo e ela ficava inquieta e nervosa, mas se comportava como uma mocinha, como ele cansava de repetir.

      Domênica olhava cada detalhe da igreja, desde os santos, colocados em nichos por toda a lateral, todos eles com a cabeça baixa e olhar triste, o que deixava-a indignada e sem entender nada, e o teto que deixava-a de boca aberta por tanta beleza dos desenhos e das cores. Anjos nus, apenas cobertos com um tecido branco ou com as mãos, com asas enormes e cabelos encaracolados, homens truculentos e barbudos, moças singelas, magras e com a cabeça coberta com tecidos coloridos e um homem barbudo, com os braços abertos, iluminado. Jesus, ensinou-lhe sua mãe. Era Jesus que abria os braços para todos seus filhos.

      Não se atrevia a fazer nenhuma pergunta, por medo da represália de seu pai, que sempre mandava-a ficar quieta e calada. Vez ou outra tinha que se levantar, fazer o nome do pai, ficar de joelhos, e depois se sentar novamente. Olhava para seu pai e via-o apenas mexendo os lábios e com o olhar fixo em algum ponto. Seguiu seu olhar e viu que o ponto fixo era um outro Jesus crucificado, que ficava atrás do altar, bem ao alto, com sangue a correr-lhe a face por causa da coroa espinhenta. Por impulso, perguntou se poderia ir até lá e imediatamente foi repreendida e ordenada a ficar calada. Continuou olhando aquele Jesus triste, com dores na cabeça, nas mãos e nos pés. Por que fizeram isso com Ele? Pensava, sem obter nenhuma resposta. Uma dor lhe invadiu o pequeno coração e se compadeceu. Olhou para o lado onde estava Jesus crucificado e uma outra imagem lhe chamou a atenção.

      Uma mulher com um homem nos braços. "Quem é, mamãe?", cochichou no ouvido da mãe. Nesse momento seu pai estava na filha para receber a hóstia. "É Nossa Senhora, mãe de Jesus, segurando-o, depois que ele foi crucificado e morto, filha". Domênica voltou os olhos para o Jesus crucificado e não entendeu. Quantos Jesus existiam, afinal? Mas não perguntou nada à mãe, apenas deduziu que era uma historinha, como nos quadrinhos que via, que Ele estava no teto, depois crucificado e depois no colo de sua mãe. Suspirou e seu pai já lhe pegava no colo novamente. Depois se lembrou que tinha que ficar de joelhos, colocou a filha sentada e se pôs de joelhos, por dois minutos, com a cabeça baixa e mão na testa, apenas mexendo os lábios, em oração.

      Domênica, apesar de ter o costume de ir à missa, nunca havia prestado tanta atenção aos detalhes da igreja. Logo a missa terminou e foram para a casa da avó. Mas antes passaram no pipoqueiro que ficava na pracinha em frente à igreja, de plantão, todos os dias em que havia missa. Domênica, então, se esqueceu temporariamente de Jesus e foi caminhando, junto com seus pais, até a casa de seus avós, segurando o saco de pipocas cor de rosa, docinhas e saborosas.

      Fim.

6 comentários:

  1. Pobre Domênica! Me deu uma enorme raiva e nojo desse pai dela. Um fedorento que era um porre e queria bancar o santo. De que adianta uma pessoa assim ir à missa? Pior: forçar o silêncio e trancar palavras da filha? Muito bem escrito e saio daqui com vontade de dar um encontrão nesse chato!rs bjs, chica

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    1. E muitos são assim, Chica, acham que religião apaga todas as grosserias que eles fazem no dia a dia. Pelo menos estão lá dentro e orando... O que não quer dizer nada...
      Chica, um ótimo fim de semana!

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  2. Olá, querida Clara
    Coitados dos inúmeros que viveram a realidade da menina!!!
    Eu não a vivi,era bom demais ir à Missa e desejado o dia por mim...
    A pipoca é infalível pra acalentar o coração infantil..
    Meu papai me dava balinhas de groselhas também rosinhas...
    Bjm quaresmal

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    1. Frequentar uma religião é questão de hábito e de informação pros pequenos também, senão vão e nem sabem pra quê têm que ir lá. E não entendem nada mesmo.
      Beijos, querida!

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  3. Quantos pais como esse ainda existem por aí, Clara Lucia bom final de semana beijos.

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  4. Também fui obrigado, em criança, a ir à missa.
    Ter que levantar cedo e ignorando todos os porquês:
    Nem hospital é coisa mais chata!
    Sem a obrigação, as igrejas devem estar às moscas.
    Mas, casa de avó para as crianças, é outro mundo!
    Beijos.

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