segunda-feira, 24 de março de 2014

Inútil


      Antes de voltar para casa, Agnaldo parou na orla da praia e se sentou para apreciar a calmaria do mar. A partir de então essa seria sua vida, uma calmaria. Até semana passada era ativo, mas agora mudara na classificação das estatísticas, de empregado para aposentado. Bem, aposentado já era fazia dois anos, mas aposentado desempregado era a sensação de alívio mais medonha que havia sentido em sua vida.

      E agora?

      Ir para casa e esperar por alguma coisa. Será que se procurasse um novo trabalho conseguiria? Tinha boa saúde, sanidade perfeita, disposição e capacidade. Disso não tinha a menor dúvida, de ser capaz de cumprir oito horas de trabalho e dar conta do recado, como sempre deu. Era inteligente e sabia o defeito das grandes máquinas só de ouvi-las em funcionamento.

      Mas existem os engenheiros... Esses que recém-formados invadiram o mercado de trabalho e mudaram toda a rotina da maioria das empresas. Eles tinham o diploma e a teoria, mas Agnaldo tinha o conhecimento de mais de quarenta anos. Como é que podem dispensar um profissional tão qualificado e que nunca dera motivo para reclamação? E não era só com as máquinas grandes não. O que precisassem era só chamar o Agnaldo para dar um jeito. Mesmo que tivesse que estender seu horário de almoço ou de seu expediente, fazia com prazer. As máquinas eram sua rotina, sua vida, sua mente trabalhando a todo vapor para que nada desse errado durante seu funcionamento. Era respeitado e querido por todos.

      Mas chegou a hora de não ter mais preocupações, de não ter que seguir horários rígidos e nem de queimar neurônios com preocupações que não fariam mais parte de sua rotina. Um vazio imenso invadiu seu peito, acelerando seu coração. Estava aliviado de ter cumprido seu dever, de ter sido reconhecido como um operário padrão, de ter feito muitos amigos e ter batizado vários filhos de funcionários. Só não acompanhava mais a turma para uma caipirinha ou cerveja. Sua mulher não gostava e com o tempo achou melhor não brigar com a patroa por pequenas coisas. Beberia em casa, sozinho.

      Andando nas areias avistou um rapaz que carregava uma criança nos ombros. Em pleno dia útil tem gente que não faz nada, não produz, pensava Agnaldo. Mas o que teria ele a ver com a vida do cidadão e seu pequeno filho? Talvez estivesse de férias, ou então desempregado, como ele, pensava. Uma lágrima rolou pelo rosto e caiu em seu peito, marcando a camisa. Uma bolinha molhada para carimbar que ainda tinha sentimentos e nesse momento não sabia o que fazer. E agora, perguntava em voz alta?

      Como chegaria em casa e avisaria a mulher, companheira de uma vida, que teriam que reduzir os gastos, pois somente a aposentadoria seria seu meio de sobrevivência. No acerto de contas recebeu uma bonificação que certamente iria para a poupança, mas sabia que não duraria por muito tempo.

      Olhou a sua volta e viu dois senhores sentados num outro banco, conversando. Mais velhos que ele, vestiam shorts e camiseta cavada. Tênis e um boné para esconder a calvície, adivinhava ele, que também era calvo. Sol forte na careca arde! E riu dos senhores e de si mesmo. Quem sabe semana que vem não se juntaria a eles para uma caminhada no calçadão? Agora poderia escolher o que fazer para matar o tempo. O ócio assustava-o profundamente.

      Amanhã não precisaria mais acordar antes do despertador para desligá-lo e não acordar a mulher, não precisaria coar o café e se trocar em silêncio, e nem esperar pela condução lotada. Que alívio, suspirou... Andaria de ônibus só quando não fosse horário de pico. Não precisaria limpar as mãos sujas de graxa com querosene e nem levar o jaleco encardido para sua mulher ferver e tentar tirar o máximo da sujeira enraizada por anos e anos de trabalho. Olhou suas mãos e gostou de saber que ficariam mais lisas e suas unhas voltariam a ficar limpas. Os calos permaneceriam, pois sabia que não seria possível removê-los. Seriam o troféu, uma doce lembrança de uma fase que terminara. Tão rápido! Ainda ontem se lembrava do dia em que começara na empresa. Moleque ainda e fazia os pequenos serviços. E desde aquela época já era um curioso, um autodidata das engrenagens das máquinas. Olhava, olhava, fuçava, perguntava, até que um dia conseguiu consertar uma máquina que já tinham dado por inutilizada. Foi promovido e seu salário aumentado. Dali em diante tudo melhorou e Agnaldo se descobriu um apaixonado pelas máquinas.

      Quem será que o substituirá? Será que tinham alguém escondido só esperando que ele pegasse suas coisas e saísse? Seria um jovem como ele fora quando começara a trabalhar lá?

      Um casal de idosos caminhava tranquilamente na beira da praia molhando os pés. Ela, bem encurvada devido a algum problema na coluna, segurava a mão do marido, que carinhosamente a apoiava. Agnaldo se imaginou naquela situação, com sua velha companheira de uma vida inteira. Antes se ouvisse a expressão "daqui a dez anos" achava tão longe, mas hoje olhando para trás e vendo que dez anos passou tão rápido e que os próximos dez anos passariam mais rápido ainda. Como tudo passa rápido quando se está trabalhando no que se gosta! E como o tempo para quando estamos em total ócio! Pensava, olhando o casal de idosos sumirem no meio da pequena multidão que estava logo à frente.

      Estava decidido, pegaria sua velha e passearia com ela, em todos os lugares que tivessem vontade. Usaria o dinheiro da bonificação para passeios e futilidades. Comeriam em restaurante e viajariam em excursões. Conheceriam Ouro Preto e Caldas Novas e depois Gramado e Canela, no inverno. Queria ver a neve antes de morrer. São Joaquim era a cidade do sul que costumava nevar. Mas antes trocaria o sofá e a geladeira. Compraria uma churrasqueira e faria um almoço especial para comemorar uma etapa que terminava. Com sucesso, com louvor, com orgulho de ter aprendido tudo sozinho e com competência para ter trabalhado numa única empresa desde quando era moleque. Apenas um registro na carteira de trabalho, várias promoções, vários aumentos de salário... Compraria presentes para os netos e brincaria com eles. Agora sim, tinham um vovô em tempo integral, um marido mais companheiro que nunca e um pai que ainda dava conselhos e puxava as orelhas caso soubesse de algo errado. Pronto, acabou!

      Chegando em casa, abriu a porta e Imaculada, sua companheira amada, lhe esperava com o costumeiro sorriso. Não suportou e abraçou-a... E chorou... Soluçou... Longamente, demoradamente...

      A partir daquele dia seria um dia a menos de vida e uma certeza a mais de que a qualquer momento não mais estaria abraçando sua velha, sua amada... A qualquer momento largaria tudo e iria viver em um outro plano, não conhecido, e seria somente uma foto antiga na parede da sala que lembraria que naquela casa morou um homem batalhador, inteligente, honesto, que aprendeu a desvendar os segredos das engrenagens das máquinas, mas que o tempo não perdoou e colocou fim a sua existência.

      Fim.

      E olha só a surpresa que temos, uma intromissão maravilhosa para seu Agnaldo, que vem lá da Chica, com toda a sabedoria que ela tem, pra acudir um senhor, assim como tantos outros, que num momento se sentiu perdido, jogado de lado, depois de anos e anos servindo da melhor forma possível.
      Aí está, sr. Agnaldo, leia, se emocione e viva! Ainda existe muito o que fazer por aqui!

      Chica, obrigada, querida! Se intrometa sempre que quiser!


12 comentários:

  1. Puxa! Me emocionei aqui agora!

    Adorei e tenho tanto a dizer que nem falarei nada agora!!! beijos,chica

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  2. Essa sua história me lembrou muito dos meus avôs. Um pedreiro (paterno) e outro mecânico de locomotivas da Rede Mineira de Viação - RMV (materno). Me avô materno passou a vida inteira tentando construir a máquina dos sonhos da humanidade: a motocontínuo. Uma espécie de eixo que girava por meio de molas sobrepostas (feixe) e que não precisava de energia de qualquer natureza para o seu funcionamento. Bastava um empurrãozinho com um dedo para que o eixo começasse a girar. Não conseguiu. Mas tentou a vida inteira!

    Beijuxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx...

    KK

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    1. Poxa vida... pena que não conseguiu, mas a vida inteira ocupou a cabeça com um sonho... quem sabe alguém ainda o faça como seu avô sonhava?
      Beijos, querido!

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  3. Viajei aqui e deixei meu comentário em forma de texto, aqui:

    http://chicaescreveporai.blogspot.com.br/2014/03/uma-carta-uma-intromissaors.html


    beijos,linda semana,chica

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  4. Clara, lindo texto. Sua visão do que seja a aposentadoria. Para muitos ela é sonhada e desejada. Meu marido é um dos que desejou muito. Aposentou-se mas voltou a trabalhar depois de 2 anos, por mais 5 anos. Depois parou definitivamente e hoje usufrui do seu tempo como quer. Adora trabalhar com madeira e isso é um hobby que demanda horas e horas de dedicação. Agnaldo vai se acostumar, tomara!
    Beijo e boa semana.

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    1. Seu marido fez certo, Lúcia. Arrumou uma ocupação que lhe dê prazer. Isso é essencial na vida de qualquer um, imagina pra uma pessoa aposentada?
      Que bom, Lúcia,fico feliz por ele e por tê-la do seu lado. Vc é uma mulher valiosa!
      Beijos e ótima semana!

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  5. Clara, você tem muita facilidade para escrever. Gosto muito!...
    O tempo passa para todos nós e creio que cada etapa da vida deve ser vista como uma fase normal, e aceitá-la, pois a experiência que se vai adquirindo vai nos trazendo mais conhecimento e alegria de viver.
    Beijos.
    Élys.

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    1. As mudanças às vezes assusta, Élys e podem até levar alguns à depressão...
      Triste, mas não tem jeito, é assim mesmo, um dia tudo modifica.
      Muito obrigada, Élys, pelas palavras carinhosas...
      Beijos

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  6. O bom da vida é viver da melhor forma possível. Tantas coisas são deixadas de lado e no fim da vida deve pesar muito...
    Ale, meu querido amigo, beijos, beijos, beijos!

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  7. Obrigado por trazer pra cá! Fiquei contente que gostaste e pode ser útil ao Sr Agnaldo! Nós duas , não controlamos nossos dedinhos na hora de escrever...e nos meter,rs!! bjs,chica

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  8. Clara, você conseguiu registar com maestria, uma fase fundamental na vida de todo homem: a aposentadoria. Disse todo homem porque vejo que a mulher encara a aposentadoria com mais otimismo pois é de sua natureza, a atividade. Seja em casa, seja participando como voluntária em vários eventos, seja ajudando em bazares e em encontros da terceira idade. Já o homem, quando se aposenta, literalmente se aposenta da vida. Passa a ficar em casa, no total ócio e isso o leva a depressão. É raro o homem aposentado que decide fazer um curso, viajar, participar de atividades voluntárias, ir a bailes da terceira idade (já reparou que nesses bailes dá muitas mulheres?) e por aí vai. O homem precisa reavaliar sua conduta para viver mais e feliz além de adotar alguma atividade para ocupar o seu tempo. Afinal, como já dizia minha sábia avó Maria, "O ócio é a oficina do demônio", rsrs
    Nossa, me estendi demais! Aproveito para dar os parabéns também a Chica bela linda carta ao sr. Agnaldo.
    Beijos

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