segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

É Difícil Acreditar Mesmo Enxergando


      - Dona Guilhermina, sente-se aqui e vamos conversar um pouco - disse a enfermeira que também era amiga de Adriana, que havia levado o marido Pedro ao hospital, depois que este passou mal e ficou imóvel na cama.

      - O que foi? Como está Pedro? - Perguntou calmamente Guilhermina sobre seu filho.

      A enfermeira pegou nas mãos enrugadas de Guilhermina, acariciando-as e começou a dizer que estava do lado dele esse tempo todo em que estavam no hospital e que os médicos fizeram de tudo, mas não teve jeito. Ela teria que ser forte naquele momento.

      - Você já disse isso, filha, eu quero saber como está meu filho... como ele está? - continuou perguntando, mas ainda muito calma.

      Mais uma vez a enfermeira repetiu tudo o que havia dito e completou dizendo que Pedro não havia resistido...

      - Ele morreu? É isso? - perguntou dona Guilhermina.

      A enfermeira apenas respondeu que sim com um movimento com a cabeça. Dona Guilhermina ficou paralisada, sem atitude nenhuma. Depois de um tempo, se levantou e foi até o portão, de onde se ouvia do lado de fora, conversas dos vizinhos. Uma das vizinhas, vendo-a, veio abraçá-la dizendo que sentia muito. Mesmo assim dona Guilhermina estava paralisada em seus pensamentos.

      Pedro era um homem forte, nos seus quarenta anos, casado há pouco e com um filho pequeno para criar, mas que não se cuidava como deveria. Não era de bebedeiras, nem badalações, nem cigarro, mas se alimentava muito errado e tinha vida sedentária. AVC foi o que o levou ao hospital, imobilizado. Não resistiu e morreu.

      Aos poucos os parentes foram chegando à casa de dona Guilhermina que, por estar em estado de choque, tomara um calmante dado pela enfermeira, pois não conseguia ter nenhum sentimento e nem se expressar de nenhuma forma com a notícia trágica da morte do filho. Dormiu até a hora do velório.

      Mesmo assim, quando chegou ao local onde seria velado o corpo do filho, não havia soltado nenhuma lágrima e não conseguia dizer coisa com coisa. Apenas se sentou em um dos bancos e ficou em silêncio, aguardando. De repente se levantou e foi até a porta de vidro por onde todos entrariam, mas que estava fechada. No fundo da sala havia uma outra porta por onde entraria o caixão. Viu o carro chegar. Se afastou e ficou encostada na parede, em silêncio. O rapaz responsável pela funerária, depois de colocar o corpo no lugar devido, abriu a porta e se retirou. Ninguém se levantou para entrar. Dona Guilhermina então, lentamente caminhou até a porta e viu o caixão com o filho dentro. Soltou um grito de dor, mas ficou imóvel. Ninguém foi ampará-la. Lentamente ela caminhou até o caixão, aos soluços, com uma dor estampada na cara, que só mãe consegue ter. Tocou as mãos geladas do filho e balbuciou, entre um soluço e outro, que não estava acreditando no que estava acontecendo. Depois disso, as pessoas começaram a entrar e finalmente ampararam dona Guilhermina, sentando-a numa cadeira propositalmente posta do lado do caixão. Dali não saiu mais. Mesmo sentada, manteve seus braços abertos, em cruz, com uma mão nas mãos e outra na cabeça do filho. E chorava, lamentava, indignava e questionava Deus o porquê daquele castigo, o porquê de levar um homem forte, com tão pouca idade, tão cedo, antes dela. Que levasse ela no lugar dele!

      As pessoas se aproximavam, confortando-a, mas ela não se importava e nem queria saber quem estava por ali. Queria ficar perto do filho até o último segundo. Mesmo seu marido, que foi atrás de toda a papelada para o enterro, não teve tanto tempo para velar o corpo do filho. E pedia para os parentes ficarem de olho na mulher, para não deixarem-na nenhum minuto sozinha. E assim foi feito.

      Depois de uma noite longa, quente de verão, e com a sala cheia de amigos e parentes, ao amanhecer, fizeram uma oração; disseram umas palavras bonitas, e mesmo assim, dona Guilhermina não desgrudou suas mãos do filho. À essa hora ela já havia levantado o véu que lhe cobria, mexia em seus cabelos o tempo todo, querendo ajeitá-lo da melhor forma, encostava seu rosto no dele e teve um surto antes de fecharem o caixão. Começou a arrancar as flores que estavam à sua volta e a desabotoar sua camisa. - "Pra quê a senhora tá fazendo isso?" - perguntou uma irmã de dona Guilhermina. - "Ele não gosta de nada pegando no pescoço dele." - respondia, aos prantos e aflita em satisfazer as vontades do filho, se lembrando do que ele gostava ou não, quando era vivo. Por fim começou a puxar as mãos dele, como se quisesse que o filho separasse as mãos duras e geladas, para poder abraçá-la pela última vez. Foi preciso a intervenção de algumas pessoas, afastando-a e conversando com paciência, explicando que ela não poderia fazer aquilo, que ele tinha que ficar como estava e que já estava na hora de fechar o caixão. Ela parou, olhou para o filho, acariciou seu rosto, deu-lhe um beijo, recolocou as flores no lugar, ajeitou seus cabelos, arrumou o véu e se afastou. Séria, sem uma lágrima. E assim permaneceu até chegarem ao cemitério.

      Lá dentro, o carro funerária esperou que todos chegassem para retirar o caixão e colocou-o no suporte de aço, com rodinhas, para poder levá-lo até o túmulo. Todos seguiram em silêncio. Mais uma vez abriram o caixão e dona Guilhermina preferiu não ficar perto da cova, e estando amparada o tempo todo pela irmã também idosa, não chorou. Ficou observando as pessoas que ali estavam e demorou um tempo olhando seu marido, que parecia ter envelhecido uns trinta anos, segurar um lado do caixão para posicioná-lo na cova. Sentiu o sofrimento dele, as lágrimas inundando seu rosto e percebeu o quanto ele era frágil, mesmo demonstrando esses anos todos, ser um homem forte, rígido, com um coração de pedra e uma saúde intocável. Viu seu marido definhar naquele momento, se curvar perante a força maior de Deus em lhe arrancar de forma estúpida, um filho que tinha muito o que viver ainda. "A vida não vale nada", pensou alto, ainda sem chorar. E continuou observando as pessoas e ficou admirada de ver tantos parentes, amigos, conhecidos, antigos vizinhos, amigos de infância, todos ali compartilhando uma dor, inconformados com a crueldade da morte precoce de um homem querido e amado.

      Sentiu falta de sua nora Adriana, mulher de Pedro e perguntou onde ela estaria. "Está internada em estado de choque. Está sedada". Respondeu a irmã que lhe amparava o tempo todo. Esperou os coveiros jogarem até o último grão de terra sobre o caixão para só depois sair dali. Ainda sem chorar.

      Depois de anos do ocorrido, o coração de dona Guilhermina se transformou num coração sem sentimentos, e a impressão que ela sempre tinha era que o filho Pedro entraria pela porta, com aquele sorriso largo, fazendo uma piada, como sempre fazia, e abrindo a geladeira para ver o que tinha de bom. "A vida não vale nada, e eu ainda estou aqui aguentando ela", sempre repetia em pensamentos, inconformada com essa perda. Deixou de viver a passou a sobreviver, sem sorrisos, sem emoções, sem lágrimas, sem sentimentos. Apenas vivendo até o último suspiro, a dor de uma eterna despedida.

      Fim.

Com este conto também participo do projeto Bloínques - 6ª Edição - Solte o Verbo - A dor de uma eterna despedida (este link é para a página do facebook).


11 comentários:

  1. Clara!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    Giu

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  2. Assim é a vida!...A saudade fica, marcando a dor, mas um dia o reencontro se dará.
    Beijos.

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  3. Devia ser proibido morrer antes da mãe!

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  4. Olá Clara,
    Adorei a história.
    A saudade sempre fica.

    Depois de um tempinho ausente do blog estou de volta.
    Deixo um grande abraço!
    Ótima semana!

    Refletindo com a Smareis---Clique Aqui----

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  5. A morte de um familiar é sempre dolorosa.
    Mas não há dor que se compare à de uma mãe que perde um filho.
    Gostei do teu conto.
    Clara Lúcia, querida amiga, tem uma boa semana.
    Beijo.

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  6. Claríssima,
    nem consigo imaginar uma dor assim... Realmente, Deus nos livre!
    Sucesso no Projeto!
    Jussara

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  7. Obrigada a todos, pelos comentários...
    Estes dias estou em falta em responder e visitar todos, mas me aguardem que eu chego em cada um.

    Beijos e uma ótima semana!!!

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  8. Poxa Clara este me pegou de jeito amiga.Cada frase eu fiz uma viagem lembrando da morte de meu irmão aos 33 anos,vi minha mãe sofrendo,meu pai durão cantando aquela musica: Segura nas mãos de Deus e vai...
    Voce com otimas descrições retratou perfeitamente este reves do parto.
    Esta dor é simplesmente inimaginavel.
    Parabens pela construção.
    Carinhoso abraço com saudações Corinthiana.
    Bjo de paz e luz.

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  9. Me arrepiei lendo isso aqui.
    Nossa, que forte.

    Em breve sua nota estará lá.
    Acabei de corrigir.

    Obrigada por tua participação

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  10. Linda e dolorida história! Lembrou-me a morte recente de um primo que também faleceu aos quarenta anos. Minha tia se desesperou, chorou mas se reergueu. Ao passo que meu tio teve seu coração empedrado e agora sofre as consequências através de problemas físicos. Parabéns!

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