Depois de muita discussão, Ester sai do quarto da filha Adriana, chorando. Não se conforma no que acabara de ver: a filha arrumando as malas para morar com o pai.
Adriana, uma filha meiga, delicada, estudiosa, um sonho de menina, educada somente pela mãe que carregou o "mãe solteira", não se conformava em viver longe do pai tanto tempo. Depois de dezesseis anos ele reaparece como um zumbi reencarnado e agita toda a pacata vida de Ester. Ronaldo chegou cheio de dengos com a filha, prometendo mil e uma coisas, conseguindo conquistar Adriana em pouco tempo.
Ronaldo é um homem bem apessoado, situação financeira estável, boa lábia, carinhoso, mas um tanto canalha e cara de pau. Quando soube da gravidez da então namorada Ester, simplesmente disse que não estava preparado para assumir compromisso nenhum e se mudou com destino desconhecido. Ester enfrentou a família, que a acusava de "moça fácil", mas ajudou-a no sustento de sua filha. Tempos difíceis, sofridos, com gravidez problemática, mas tudo terminou bem. Adriana nasceu miudinha, mas com saúde e resistência suficientes para crescer normalmente.
Ester não se conformava de ter que ouvir da filha que agora iria ser feliz ao lado do pai, já que a mãe nunca quis tê-lo por perto. Por mais que ela explicasse à filha que ele simplesmente sumiu, Adriana não acreditava, ainda mais agora que o pai voltou e contou sua versão da história. Inverteu a situação à seu favor deixando Adriana sofrendo mais uma vez.
Até quando esse transtorno? - perguntava Ester, olhando para o alto, esperando uma explicação do Altíssimo para uma vida tão difícil e sofrida. Por que esse homem tinha que voltar? - continuava indagando Deus, procurando na imensidão azul do céu, uma resposta que a confortasse e lhe desse um pouco de paz.
Adriana estava totalmente cega e surda, além de eufórica e feliz. Mas Ester sabia que seria uma felicidade aparente, pois conhecia muito bem aquela peste do Ronaldo. Este apenas dizia para não se preocupar, que cuidaria da filha com todo o carinho, que tinha estrutura suficiente e que estava arrependido de não ter assumido antes. Deixou todos os dados residenciais com Ester e lhe prometera trazer a filha de vez em quando, mesmo se esta não quisesse.
Em seu silêncio, em suas orações, Ester resolveu não mais lutar contra a filha, tentando convencê-la a não tomar essa atitude. Apenas desejou-lhe boa sorte e disse que as portas de sua casa estariam sempre abertas. Optou por continuar ouvindo o que a filha lhe falava, do que criar intrigas entre ela e o pai e com isso a filha se calar.
Adriana fechou as malas, disse um tchau seco sem olhar para os olhos da mãe e se foi. O pai estava aguardando no portão, em seu carro de luxo.
Depois de bater a porta, Ester despencou no chão, desesperada e aos prantos, permanecendo naquela posição o resto do dia. Ainda tinha uma esperança da volta da filha, que até ontem era aquele bebezinho carequinha e rosado, e hoje já toma decisões sozinha. Ester se lembrou que ouviu de muitas pessoas que filhos nós criamos para o mundo, que devemos dar asas para que eles façam suas escolhas, e os pais, por bom senso, devem ficar na retaguarda, dando o apoio necessário caso precisem. E essa precisão Ester aguardava ansiosa, com o coração nas mãos, pela volta da filha. Achava injusto o pai chegar depois de tanto tempo, já com a filha grande, formada, e arrancar-lhe assim, brutalmente. Afinal, não colaborara nada para sua educação e para seu sustento. Tudo muito fácil, já que não teria que se esforçar nada para cuidar de uma filha.
Depois da primeira noite sozinha, Ester parou de chorar e resolveu seguir sua vida, voltar à rotina e não se preocupar tanto se a filha estava bem ou não. Para saber disso bastaria apenas um telefonema. E isto ela faria diariamente. Pouca conversa, mas sentia que a filha estava bem. Um ciúmes tomou conta de seu coração só de imaginar a filha amando mais o pai do que ela, que tanto batalhou para lhe dar uma vida decente. Mas se Adriana está bem, está tudo certo então. Não há mais o que fazer e nem com o que se preocupar. Ester sabia da educação que dera à filha e confiou na forte base com bom caráter, nos exemplos corretos, no amor abundante e na capacidade da filha em se virar, caso precise.
Aos poucos, Ester foi ficando tranquila e até conseguia sorrir e se divertir com os amigos que sempre a arrastavam para algum bar ou restaurante.
Sim, os filhos são criados para o mundo e mãe deveria ter vários corações espalhados pelo corpo, porque um só não bastaria para quando passasse por dores, por saudades... é cruel demais.
Adriana, por decisão própria, resolvera dividir seu tempo com o pai e com a mãe, passando alguns dias com cada um. Sim, Ester fizera um bom trabalho, uma boa educação com a filha amada. Continuava aquele bebezinho rosado e risonho, que brincava de esconder atrás do sofá para a mãe procurar até encontrar, só que agora a brincadeira era em outra casa, com os outros cinquenta por cento de seu DNA.
A vida dando um jeito, se encaixando da melhor forma possível, nessa modernidade de família que é tão comum hoje em dia.
Fim.