segunda-feira, 7 de maio de 2012

Agora Inês é morta - Parte I

 
      O dia amanheceu brilhante, sem nenhuma nuvem no céu, outono, um friozinho gostoso, tempo seco, com as folhas das árvores caindo e se aconchegando nas calçadas e ruas, esperando uma ventania que as leve a algum lugar desconhecido.

      Apesar dessa frieza toda, a família Oliento permanecia unida; todos de cabeça baixa e em silêncio a velar o querido Eustáquio, que falecera na noite anterior, vítima de enfarte fulminante no miocárdio. Todos em silêncio e nenhum choro, inclusive de sua viúva, que vez ou outra, se sentava numa cadeira solitária, ao lado de seu caixão. Ela olhava, acariciava seu rosto gelado e petrificado, voltava a mão ao colo e ali permanecia, olhando para o nada, com um certo desprezo e ao mesmo tempo um alívio. A sensação de liberdade que a viúva sentia nesse momento, transparecia em suas feições, e quem a conhecia sabia muito bem ler o que seus olhos, que olhavam para o nada, diziam. Seus filhos, num total de três, todos homens, ficavam de olho na mãe, caso ela precisasse de alguma coisa, ou algum apoio. Mas estava tranquila, Maria Isadora era mulher forte, guerreira, e talvez por este motivo não tenha sentido dor com a morte do marido. Eustáquio era um homem sério, severo, defensor dos bons costumes, da obediência, dos valores do século passado, e não aceitava nada menos do que ser obedecido com suas ordens. Nenhuma lágrima...

     Tanto a viúva quanto os filhos sabiam que a vida continuaria como sempre foi, agora com menos ordens, menos rancores, menos regras impostas que eram obrigados a seguir. Não sofriam com o final trágico do sargento Oliento, o que para muitos, era considerado como uma atitude fria e totalmente carente de amor e agradecimento. Mas sabiam como era a vida desde sempre, com uma pessoa rude, autoritária, arrogante e que se achava o centro do universo e o dono da palavra.

      Enquanto todos ficavam em silêncio no velório, Eustáquio, acompanhado de sua mãe, também falecida, assistia a tudo, estupefato e pasmo. Ficavam de certa forma flutuando, num canto da sala, de modo que pudessem ver todos, mas ao firmarem em uma pessoa, viam apenas aquela pessoa, como se todo o restante  sumisse. Não entendia como a família que ele cuidou, educou, sustentou, não tinham a sensibilidade de chorar por sua morte:

      - Mãe, - dizia à sua mãe - eu cuidei deles, por que não conseguem chorar minha partida? Nunca deixei que nada faltasse, sempre tiveram tudo do bom e do melhor, tudo com meu trabalho e esforço, eduquei todos com o melhor método que aprendi! - resmungava com sua mãe, insatisfeito e querendo mudar essa situação.

      - Filho, você colocou pedra no coração e passou pedra para eles... - respondia sua mãe, tentando explicar o motivo de tanta frieza - Você nunca demonstrou amor e nunca sequer ouviu o que tinham para dizer. Somente você falava e nada ouvia.

      Eustáquio ficou observando sua esposa Maria Isadora e um filme veio à sua frente, desde quando se conheceram. Como era linda a menina dos olhos cor de mel, que caminhava cabisbaixa pelas ruas de terra, num dos bairros mais pobres daquela pequena cidade. Foi amor à primeira vista. Logo foi pedir sua mão  ao pai, que o aconselhou a respeitá-la e a tratá-la com carinho. E foi o que pensava ter feito desde aquele dia.

      Agora morto, podia sentir toda a dor e tudo o que passaram, enquanto estiveram juntos. E lances rápidos, como um filme, começaram a aparecer na sua frente, desde que se casaram. O que via e o que sentia vendo sua esposa, era choro, dor, revolta, nojo e humilhação. Agora ele enxergava o quanto arrogante ele fora esse tempo todo com aquela que o desposara. Numa ocasião, Maria Isadora com dores pelo corpo, devido aos trabalhos domésticos, se deitou e queria apenas dormir. E Eustáquio, com toda a imponência de sargento, começou a provocá-la, querendo sexo, e que ela devia obrigações matrimoniais a ele; como esposa; ela entendia e obedecia sempre, mas depois virava para o lado e chorava quietinha, escondida, com nojo daquela situação. E lamentava por sua infelicidade ao lado do homem que havia prometido ao seu pai, tratá-la com carinho.

      Eustáquio, ainda chocado por não ser tão amado quando imaginara enquanto ainda era vivo, continuava a assistir cenas de sua vida, projetadas na fria sala do velório municipal, simples, mas limpo, organizado. "Por que velório municipal e não em minha casa, como deixei bem claro para todos?" - indagava inconformado por ter uma ordem sua desobedecida. Maria Isadora chorava, em muitas cenas, e a que mais a fazia infeliz era quando o marido chegava da rua, todo suado, e deitava ao seu lado para dormir, sem ao menos se lavar. O nojo era tanto que às vezes ela precisava se levantar e ir até o quintal, na fria noite, às vezes chovendo, só para vomitar, em silêncio, com a desculpa de ver se o cachorro da família estava se alimentando. Isso fez com que Eustáquio sentisse todo aquele sofrimento, mesmo que passado, mas agora vendo toda a cena, toda a dor voltava à tona.

      Numa outra ocasião, de muito choro e desespero por parte de Maria Isadora: Eustáquio se vê todo embriagado, se esfregando com uma mulher vadia, dessas que se oferecem nos bares da vida, em troca de uma dose de alguma bebida barata. Maria Isadora sabia de tudo, pois contavam à ela e além disso, sentia o cheiro horrível de perfume barato na roupa do marido. "Mas eu sou homem! Tenho minhas necessidades, precisava de novidades, de satisfazer meus desejos" - questionava sua mãe, que apenas o acompanhava nessa hora de despedida de sua família, para poder seguir o caminho espiritual. Mesmo com toda essa teimosia, sofria, pois à medida que as cenas iam passando, sua esposa chorando, toda a dor que ela sentia naquele momento, ele sentia agora. Na verdade nunca imaginaria o quanto sua amada sofria. Foi educado assim, na rigidez, e sempre achou esse a melhor forma de tratar todos seus protegidos. Achava que não poderia vacilar, nem ficar com carinho, com atenção demais, pois assim acabaria todo o respeito que tinham   por ele.

      Uma dor imensa tomou conta de sua alma quando viu várias cenas, uma atrás da outra, em que ele xingava e humilhava sua esposa, na frente de todos, e também seus filhos, na frente dos amigos e de quem quer que estivesse por perto. Toda a mágoa carregada por anos por sua esposa e a indiferença de seus filhos, agora Eustáquio sentia tudo, de uma vez só. Não se conteve e pediu para sair dali, pois não aguentava saber que não era amado e muito menos admirado. Ficara sabendo que o que havia entre a família e ele era tão somente respeito e medo. E ficou muito mais decepcionado quando todos souberam de sua morte e respiraram aliviados, porque agora, finalmente, teriam uma vida mais leve, sem ordens a todo o momento.

      Não poderia sair dali agora, ainda havia muito o que ver, explicou sua mãe desencarnada.


Continua...

9 comentários:

  1. Quero ver como a história contiunua.

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  2. Puxa, Eustáquio foi ( ou imaginou ser) um bom marido e pai, mas pelo visto... não fará muita falta,rs

    Vamos continuar! beijos,chica

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  3. Ihhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh....

    Acho que num quero ler mais nada, não!!
    Tá bom, já!!!

    Beijuxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

    KK

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  4. Clara

    Precisou desencarnar para Eustáquio perceber que foi um ser tão ignóbil.
    Já estaria de bom tamanho se sua crônica terminasse, mas fiquei agora curiosa com o seu desenrolar.

    Um lindo dia para você
    bjs

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  5. Clara, gostei muito do modo como escreve e deixa sua imaginação fluir com um tema triste e espiritual. A leitura se dá de uma forma leve, mesmo se tratando de um funeral e o desenrolar da história causou curiosidade. Tdos esperam o desfecho.
    Boa semana
    bjo
    Zizi

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  6. Clara , você está escrevendo cada vez melhor. Esta sua narrativa é muito fácil de se ler e aguardo a continuação.
    Beijos.

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  7. Oi Clara!
    Menina, você está com a imaginação solta heim?
    Quantos Eustáquios existem soltos por aí.rsss
    Estou curiosa!
    Beijinhos e uma ótima semana!

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  8. Que legal Clara! muito bom mesmo adorei! linda historia!
    ********************************************************
    Quero voce no meu blog ! venha se juntar ao meu grupo de amigos!
    sua presença é importante.
    um abração e um beijão!

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  9. Ui! Deixei pra ler quando já tivesse mais capítulos. Agora vou no 2º e fico sabendo rapidinho! rrs Você é uma escritora. Das boas.
    Beijo!

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