quarta-feira, 6 de julho de 2011

A minha infância

Mais uma crônica...

Fernando Sabino
A Mulher do Vizinho
Editora Record

O Melhor Amigo

A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
- Meu filho? - gritou ela.
- O que é - respondeu, com ar mais natural que lhe foi possível.
- Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido, tentou ainda ganhar tempo:
- Eu? Nada...
- Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar - o jeito era procurar comovê-la. Veio caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
- Olha aí, mamãe: é um filhote...
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
- Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
- Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
- Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
- Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
- Ah, mamãe... - já compondo uma cara de choro.
- Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
 O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado: a gente também não tem nenhum direito nesta casa - pensava. Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único amigo enxotado desta maneira!
- Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! - gritou, lá do quarto, e ficou esperando a reação da mãe.
- Dez minutos - repetiu ela, com firmeza.
- Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
- Você não é todo mundo.
- Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não faço mais nada.
- Veremos - limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
- A senhora é ruim mesmo, não tem coração.
- Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez minutos para brincar com seu novo amigo e depois... Ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
- Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
- Ah, mamãe, deixa! - choramingou ainda: - Meu melhor amigo, não tenho mais ninguém nesta vida.
- E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
- Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
- Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa toda...
Meia hora depois, o menino volta da rua, radiante:
- Pronto, mamãe!
E lhe exibia uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por 30 reais.
- Eu devia ter pedido cinquenta, tenho certeza de que ele dava - murmurou, pensativo.



Na verdade eu me lembrei de minha infância, só que não era cachorro e sim gato. Um filhotinho lindo que minha mãe me fez devolver. Só não tive a perspicácia do menino em vender. Apenas devolvi.

6 comentários:

  1. Clara,

    Bom dia!

    Lembrei do meu neto com cerca de 8 anos. Aconteceu do jeitinho da crónica... só que ele trouxe pra casa 2 coelhos. Minha filha não contemporizou... fiquei morrendo de pena do Diogo!

    Girassóis nos seus dias!

    Beijos

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  2. Celina, minha mãe nunca gostou de animais... Qdo me casei a primeira coisa que comprei pra minha casa foi um cachorro. Hoje tenho 3 e adoro.
    Beijos.

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  3. Clara,
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    Espero que ajude.
    Beijossssss

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  4. Ai que lindo que ficou Elaine... muito obrigada!
    Beijos.

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  5. Que função de linguagem é esse trecho? Função Emotiva, Poética,
    referencial ou fática? A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto. Lima

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  6. Oi, Lima...

    Uma ótima pergunta... mas sabe que não sei?
    Em se tratando de Fernando Sabino, acho que pelo texto seria referencial.
    O que vc acha?

    Abraços!

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